15.12.10

Qual a diferença entre Ana Gomes e um rotweiller?

Um rotweiller ataca quando o dono ordena, Ana Gomes morde, se for preciso, quando a consciência lho exige.

Juntos contra o neocaritativismo? O ladrão de bicicletas Alexandre Abreu e eu estamos menos longe um do outro do que parece

Alexandre Abreu volta ao tema da inovação social, para rebater uma crítica minha a um anterior texto dele. Acha ele que não rebati os seus dois argumentos principais: a ideia da progressiva transformação do debate em redor da ‘inclusão social’ numa problemática cada vez mais técnica e menos política; (...) a tese de que o elogio da descentralização da política social, que acompanha habitualmente o discurso acerca da inovação social, deslegitima a acção do Estado e legitima a sua reengenharia em moldes neoliberais.
Vamos a ver se os rebato agora de modo satisfatório para o crítico.

1. A "tecnicização" do debate da inclusão social

Discordo de que estejamos a assistir a uma "tecnicização" do debate da inclusão social. Em Portugal estamos é a assistir ao desaparecimento do tema. À escala mundial, estavamos a assistir até à grande crise e talvez ainda estejamos, goste-se ou não, à maior redução da intensidade da pobreza de que há memória, sobretudo por obra dos sucessos económicos da China e da Índia, independente do que pensemos sobre a natureza desses regimes.
A inclusão social é muito mais vasta que o combate à pobreza, mas é nesse âmbito qu Alexandre Abreu se coloca e por ele ficarei. Para mim, a questão não é a de saber se iniciativas filantrópicas (como a dos milionários do manifesto de Bill Gates e Warren Buffett) são ou não "funcionais" ao capitalismo, é a de saber se mudam alguma coisa e mudam, mesmo que não mudem o "modo de produção". Mas, de novo, é outra história que estará em causa: queremos discutir a possibilidade da revolução, a inclusão social ou a redução da pobreza? Para acabar este ponto, não vejo nenhuma tecnicização nova no debate da inclusão social e seguramente o microcrédito (aliás, alvo recente de violentas e aparentemente justas críticas) não faz parte de tal tecnicização.
As iniciativas cívicas de redução da pobreza - ditas da sociedade civil - têm séculos e o microcrédito é apenas uma versão recente desse movimento antigo. Só que como nunca esperei que o microcrédito salvasse os pobres do capitalismo também me não desiludo por não o fazer nem me abstenho de saudar os que salva da pobreza, mesmo sabendo todos os seus limites.

2. A descentralização "deslegitima" a acção do Estado

Aqui, Alexandre Abreu passa completamente ao lado do fulcro do problema. A descentralização não deslegitima coisa nenhuma. Grande parte da acção do welfare state mais desenvolvido é descentralizada, o problema está na privatização da política social, no recuo no reconhecimento de direitos que acompanha o que tenho chamado de neocaritativismo e não na descentralização. Por mim, defendo mais Estado local na acção a favor da inclusão social - claro que com mais recursos - e maior empenhamento, entre nós, das autarquias. Mas, devo dizer, o risco de clientelismo do Estado local é o maior problema, não é a funcionalidade neoliberal nem a deslegitimação. Aliás, pensanso no caso português, o que mais deslegitima o Estado é a delegação num sector integralmente sem fins lucrativos, dominado pela Igreja, cheio de boas intenções mas renitente a reconhecer direitos sociais. Para que se perceba do que falo, estou a falar das poderosas IPSS que transformam recursos públicos em aparentes iniciativas privadas. Mas, seguramente, não são neoliberais. Serão conservadoras? Concerteza, mas é outra coisa, têm tanto horror ao liberalismo quanto o Alexandre para não dizer que fogem dele como o diabo da cruz.
Pergunto-me muitas vezes porque o Estado local em Portugal se interessa tão pouco pela inclusão social e vou encontrando algumas respostas. Na minha limitada experiência de autarca já me apercebi que o apetite pela delegação das funções sociais por parte das autarquias nas IPSS é tão grande na Almada da CDU como nos municípios do PSD ou do PS. E não paro de me interrogar porque há tão pouca iniciativa autárquica na àrea social. Basta pensar em Espanha para ver como tudo pode ser diferente.
Para ser claro, o que é funcional ao neoliberalismo é a privatização das funções sociais e a sua entrega ao mercado. Mas não é isso que está na moda em Portugal (nem nunca esteve).

Tudo isto dito, mais conceito marxista menos conceito marxista, mais marxismo mecanicista menos marxismo mecanicista, Alexandre Abreu tem um ponto forte no seu argumento: com o microcrédito pode começar-se pobre e acabar-se falido. Mas isso também é verdade para o crédito dado pelo Estado. Enquanto governante perdi uma batalha (perdida até hoje) para que o IEFP não pratique usura e accione hipotecas sobre beneficiários das suas medidas cujos negócios falham (mas sempre o fez, ainda o faz e não é privado nem instrumento do neoliberalismo).
Tem um segundo ponto ainda mais forte: o microcrédito só tira da pobreza uma pequena fracção dos pobres. Mas aí reside uma forte contradição do argumento. Se tem utilidade limitada, não é inútil. E cada uma dessas pessoas que sai da pobreza, vale uma medida. Sem pieguices, quando conhecemos o rosto dos pobres e os casos individuais de sucesso, às vezes devalorizamos o estruturalismo excessivo e o fatalismo dos que acham que só o que muda quase tudo vale a pena. Talvez seja essa a minha maior divergência com Alexandre Abreu. Porque no resto - e é muito - estamos mais próximos do que ele avalia e talvez os meus textos reflictam.

Acho, contudo, que em matéria de heresias sobre este tópico, há outras mais flagrantes para desenvolver. Por exemplo, a moda portuguesa recorrente de confundir luta contra a pobreza com ajuda alimentar, que vai da Conferência de São Vicente de Paula à associação patronal da restauração, passando pelos muitos bancos alimentares. Com o Natal à porta, Alexandre, vai ver a força que essa assimilação simbólica tem. E se há medida supostamente contra a pobreza que seja "funcional" ao neo (e ao paleo) liberalismo, é essa.

13.12.10

Fernando Mendonça, um protagonista discreto

No dia em que alguém voltar a olhar parao sector cooperativo como uma realidade a desenvolver e adaptar os seus ideias de solidariedade e fraternidade às duras condições de competitividade do séc. XXI terá que estudar como o movimento cooperativo agrícola no sector leiteiro em Portugal resistiu nas últimas décadas à ofensiva das multinacionais do sector e triunfou sobre elas, mantendo um predomínio no mercado português, que é raro actualmente no sector cooperativo e não é, infelizmente, acho eu, acompanhado por nenhum outro ramo do sector
Nesse dia terá que estudar-se o papel de alguns personagens discretos mas eficazes, ligados aos seus projectos e sonhadores mas pragmáticos, capazes de manter a vinculação aos seus associados locais mas sem medo de enfrentar os desafios da globalização.
Fernando Mendonça, que ontem morreu subitamente, será um protagonista incontornável nesse estudo. Conheci-o apenas no exercício de funções públicas, no quadro de dois grandes desafios - a adopção do Código Cooperativo e a organização do primeiro congresso cooperaivo em muitas e muitas décadas. 
A discussão do primeiro implicou a exigência do reconhecimento da especificidade do sector, mas também a sua disponibilidade para se interrogar sobre as suas fronteiras exteriores com os outros sectores da economia.  A do segundo implicou a capacidade de ultrapassar as fronteiras interiores entre ramos cooperativos, nascidos em diferentes movimentos históricos e com diferentes conotações ideológicas. Em ambos os desafios, Fernando Mendonça foi um aliado de peso, de grande estatura moral e política.
Dele, em todos os momentos posteriores, apenas recebi respeito e consideração, que sempre retribui com admiração e orgulho.
Partilhámos a certa altura o sonho de ver eliminadas as restrições à constituição de bancos cooperativos, para além das espartilhadas caixas de crédito agrícola mútuo, mas o sector não tinha e não tem músculo financeiro para tanto e não é matéria em que se possa tentar aventuras inconsequentes. Mas, como todos os projectos começados com alma, este e outros projectos cooperativos encontrarão novos protagonistas, se bem que, sendo todos nós substituíveis, há ns mais substituíveis que outros e, no sector cooperativo, Fernando Mendonça se encontra entre os que não têm substituto fácil.

10.12.10

A favor ou contra um fundo para financiar o custo do despedimento? Depende.

A ideia da criação de um fundo para financiar os custos do despedimento não me perturba e vejo até nela algumas potencialidades, ao contrário de outros. Como sabemos, quando uma empresa está em dificuldades, o custo elevado do despedimento pode construir uma situação absurda: sem despedir pode matar a empresa com prejuízos elevados; despedindo, pode não ter dinheiro para manter viva a empresa sem liquidez.
Como em muitas ideias, o diabo são os pormenores. Nada contra que uma empresa desconte desde o primeiro dia em que contrata um trabalhador para financiar o custo que terá com a indemnização caso venha a ter que o despedir. Nada contra que esse fundo seja gerido de modo a minimizar os custos extraordinários no momento em que ocorre o despedimento, tornando o custo de cada despedimento menor e, sobretudo, menor no momeno em que a empresa já está em dificuldades. Tudo contra que o Estado ou a Segurança Social co-financie esse fundo com um euro que seja, porque não é papel do Estado pagar o custo do despedimento, apenas apoiar os desempregados, depois de o serem e, mesmo aí, só em conjunto com empregadores e trabalhadores, excepto no caso dos desempregados pobres.
A torre Beyazit de Istambul presta um novo serviço público aos residentes e turistas, anunciou o Hürryiet: previsão meteorológica. É iluminada de azul se amanhã se previr sol; amarelo se estiver enevoado; verde se chover e vermelho se nevar. Que torre lisboeta poderia prestar o mesmo serviço?

9.12.10

Da autópsia da retórica do facilitismo ao momento de erguer a taça num brinde à política educativa de Lurdes Rodrigues

A autópsia da retórica do facilitismo na política de educação está feita, de modo definitivo, pela Câmara Corporativa e pela Jugular. Olhemos, ainda, para os resultados do PISA, mas de outro ângulo.
Numa entrevista, Maria de Lurdes Rodrigues disse (cito de memória), que gostaria de ser avaliada pelos resultados que conseguisse. O problema é que, em política e em políticas que buscam mudanças estruturais em particular, o tempo da produção de resultados é mais longo do que o tempo das batalhas mediáticas, impulsionadas - legitimamente - pelos seus adversários. Algo que me faz lembrar dois paralelismos.
Há um paralelismo entre as boas reformas políticas e as boas restruturações empresariais. Produzem dor, eventualmente perdas no curto prazo, mas melhoram os resultados a longo prazo. No capitalismo dependente dos especuladores em bolsa, estas reformas são mal vistas, porque os investidores querem resultados já e podem destruir as empresas com essa sede de lucro.
Há também um paralelismo entre as boas reformas políticas e os bons vinhos. Quando jovens, já se nota a diferença, mas ainda não é significativa, envelhecendo vão melhorando e o sabor atinge o seu ponto máximo, mas o consumidor apressado já desperdiçou a oportunidade.
Maria de Lurdes Rodrigues já não é ministra quando as suas reformas estruturais começam a ter efeitos visíveis. A contestação de que foi alvo foi mesmo vista como um factor de enfraquecimento eleitoral do PS nas útimas legislativas, dada a exploração, à esquerda e à direita do longo e duro conflito com os sindicatos. Ela não teria toda a razão e, evidentemente, não terá tomado todas as decisões certas em todos os momentos.
Mas há algo que agora todos esses ferozes adversários deveriam agora, com distância, ser capazes de reconhecer. As suas políticas estavam orientadas para a melhoria da escola pública, se necessário contra tudo e contra todos. E a escola pública está a melhorar.
Há-de chegar a altura de saborear o vinho destas políticas amadurecidas, se o consumidor não se precipitar e os equivalentes dos especuladores bolsistas não conseguirem uma contra-reforma.
Chega sempre o momento em que o bom enófilo e o bom CEO podem saborear a sensação de que cumpriram a sua missão, apesar de todas as agruras que sofreram e mesmo que tenham sido levados a abandonar a empresa em que a cumpriram. Por isso, também, chegou o momento de fazer um brinde a Maria de lurdes Rodrigues e à sua equipa. 

PS. Aos que se apressarem a desvalorizar este texto por eu ser, com orgulho, amigo de Maria de Lurdes Rodrigues digo apenas que a minha filosofia de vida é a de ser mais duro com os próximos do que com os distantes e que, se a amizade nunca me cegou na hora de criticar, também não a deixo tolher-me na hora de reconhecer o mérito.

8.12.10

"Por nossas mãos, por nossas mãos". Pois, Porfírio, tens razão.

A transformação social não é outorgada, já sabemos. O Porfírio comentou uma réplica minha aos Ladrões de Bicicletas sobre o papel actual de coisas como microcrédito e concordo com o seu ponto. O neocaritativismo é um adversário e não um aliado dos que defendem mais emancipação e justiça social. Se do que escrevi não resulta claro que penso assim, o inferno está no detalhe do texto.
Tenho andado tão absorvido por outras coisas que nem as discussões que me envolvem sigo. Por isso chego com vários dias de atraso ao texto do Porfírio. Mas o essencial está no que ele, escrevendo, recordou: "por nossas mãos, por nossas mãos". Pois, Porfírio, tens razão. Serão muitos os que não o esqueceram?