23.5.08

A desigualdade de rendimentos da Letónia é maior que a nossa

O Portugal político-mediático acordou hoje em choque com a possibilidade de ser o país com maior desigualdade da União Europeia.
Mas Portugal é mesmo um país com um nível de desigualdade elevado. Já o é há muito tempo e nada leva a crer que esteja a caminho de deixar de o ser.

A dinâmica económica do país continua ligada a fortes disparidades salariais, não apenas entre categorias profissionais como, sobretudo, entre sectores modernos e sectores tradicionais, mesmo para níveis de qualificações comparáveis.

O modelo político é o mesmo há décadas. Assenta num nível de fiscalidade modesto que limita a intervenção redistributora do Estado. Obedece a um modelo de política social estatutário, isto é, que reproduz nos benefícios concedidos a desigualdade pré-existente nos salários, magramente complementado por mecanismos de alívio da pobreza extrema. É, portanto, natural que os níveis de desigualdade oscilem em torno de um padrão que se mantém, como se vê nos dados do coeficiente de Gini que hoje se colhiam na base de dados do Eurostat.

Se mudarmos de indicador podemos alterar ligeiramente os resultados, mas a leitura será sempre a mesma: Portugal é um país muito desigual. No Canhoto vários de nós o andam a escrever isso mesmo há muito tempo.

Se não se quiser tentar tapar o sol com uma peneira, há que dizer claramente que só uma crise económica acentuada ou uma mudança de modelo social drástica alterará o facto.

O primeiro factor é indesejável, o segundo não tem protagonistas que o defendam, porque só acietam uma ou outra d eum conjunto de medidas que só se tomadas solidariamente produziriam efeitos.

Quem vai pedir aos portugueses que se aumente o peso dos impostos no PIB? Ou que, com esse dinheiro, se crie uma pensão básica que retire da pobreza uma percentagem significativa de pensionistas e se redireccione as prestações sociais para o reforço da clase média em vez do apoio anémico aos grupos mais desfavorecidos?

Quem vai defender o acesso universal e gratuito de todas as crianças a serviços colectivos de guarda e educação, democratizando cuidados educacionais que nas famílias reporduzem brutal e inelutavelmente as desigualdades? Quem vai defender que a educação deve precupar-se pelo menos tanto com os que têm dificuldades graves como com a promoção dos alunos excelentes e deve diminuir o nível de reprovações e de abandono?

Quem vai pedir aos portugueses mais progressividade na taxa de imposto e mais impostos sobre transmissão de património para prevenir a reprodução geracional de privilégios e obter receitas dirigidas à redistribuição de rendimentos?

Quem vai impulsionar uma subida no salário mínimo que o coloque numa percentagem substancialmente mais elevada do salário médio e financiar o risco de desemprego dos actuais detentores do salário mínimo que possam ser condenados ao desemprego?

Quem vai sustentar maior flexibilidade no trabalho para compensar os custos acrescidos das políticas sociais minimizando impactos na competitividade?

Quem vai defender a redução drástica dos orçamentos na função de soberania, por exemplo na defesa ou no consumo público, que financia sectores ineficientes, para reorientar recursos?

Quem vai eliminar os subsídios abertos e ocultos, a cartelização e as ineficiências económicas provocadas pela falta de concorrência em actividades económicas escandalosamente lucrativas à custa das classes médias?

Quem vai defender que os cidadãos devem ser apoiados por tempo indeterminado desde que tenham uma perda significativa de rendimentos e demonstrem disponibilidade para o trabalho?

Quem vai contrariar a tendência para a privatização dos cuidados de saúde e aceitar que os transportes colectivos dedvem ser financiados pelo Estado de modo mais generoso?

O nosso problema de desigualdade também passa por todos achamos natural que os mais pobres sofram as consequências da sua pobreza, todos querermos transmitir aos nossos filhos o bem-estar que construimos ao longo das nossas vidas, todos aceitarmos pagar fortunas por serviços que deveriam ser subsidiados e todos nos queixarmos mais dos impostos do que dos juros dos empréstimos bancários ou das margens de lucro de actividades especulativas.

Por tudo isto o meu prognóstico é o de que Portugal continuará a ser o país mais desigual da Europa, a menos que outros caminhem para o aprofundamento das suas desigualdades.

No fundo, o que hoje chocou Portugal não foi a desigualdade mas a ferida no orgulho nacional que sempre provoca a ideia de sermos os últimos no que quer que seja. Se não fosse isso, não havia notícia. Assim sendo, para nosso descanso, aqui fica a correcção: a desigualdade de rendimentos da Letónia é maior que a nossa!




Fonte: Eurostat

1 comentário:

Nuno Castelo-Branco disse...

E o que andam a fazer há décadas, com fundos estruturais estourados em milhares de km de auto-estradas, cursos de manicura e cabeleireiras, etc? Será coincidência? Olhem para a Irlanda e vejam como é que se portaram por lá. Ou aqui para mesmo ao lado, para a Espanha...
Além do mais, os países bálticos estiveram sob a bota soviética, assim como os checos, eslovacos, polacos, húngaros, etc. O regime não tem desculpa alguma para apresentar aos portugueses, porque falhou naquilo que era essencial: educação/formação profissional. Falharam todos, da esquerda à direita.