A Primavera árabe surgiu aos olhos ocidentais como um movimento jovem, urbano e de descontentamento social que gerou uma corrente de simpatia e esperanças de um novo período no Médio Oriente, menos centrado no pragmatismo maquiavélica das doutrinas dos interesses nacionais e mais ancorável na solidariedade entre os povos.
A evolução dos processos diferenciados de que estes movimentos de insurreição geraram em diferentes países deve deixar-nos menos optimistas, embora também não conduza a um balanço globalmente negativo.
A primeira mudança imediata nos regimes políticos da região é a da expansão de regimes pluripartidários com eleições competitivas e razoavelmente livres. Os processos assim ocorridos na Tunísia, em Marrocos e no Egipto atestam que é possível gerar processos democráticos em países árabes sem sobressaltos excessivos.
Concomitantemente, esses processos eleitorais fizeram surgir um novo quadro político-ideológico, com a reconversão das velhas fraternidades muçulmanas num novo demo-islamismo. O movimento demo-islâmico parece vir a preparar-se para ocupar o lugar do centro-direita na política dos países árabes minimamente estabilizados. Mais, este centro-direita, inspirado pelo partido AKP da Turquia, vai transformar o sistema turco de excepção que muitos julgavam visceralmente ligada à história laica do país no século XX no centro ideológico hegemónico no novo quadro político do Médio-Oriente.
Provavelmente, haverá um conjunto de países que arriscam tornar-se em novos Líbanos, retalhados pro guerras civis sangrentas de base étnica e religiosa. O derrube de Saddam já tinha arrastado o Iraque para essa situação. Mas seguramente a Líbia terá a sua prolongada guerra pelo controlo do poder e, tudo o indica, assim acontecerá também com a Síria, havendo o risco de a desestabilização da Síria arrastar o Líbano, embora possa ter também o efeito inverso. Com a Líbia, o Iraque a Síria desestabilizados, a frente que foi anti-americana na região fica desfeita, mas também razoavelmente imprevisível.
O desfecho do processo do Egipto tem ainda alguns níveis de incerteza. Fazendo um paralelo com o Portugal de 1974, o Egipto ainda não atingiu o seu 25 de Novembro, a partir do qual se definirá a natureza do novo regime. Tudo aponta para que se junte aos novos regimes demo-islâmicos, depois de a revolução ter devorado na sua energia os militantes urbanos, laicos ou das minorias religiosas. A ser assim, Egipto e Turquia fariam uma dupla hegemónica sobre a região que geraria, para o melhor e o pior, um novo parceiro político na discussão do Médio-Oriente, hegemonizado por um parceiro da NATO e suportado em dois exércitos altamente profissionalizados e com treino ocidental.
Há, contudo, sinais de que o eixo Turquia-Egipto e a nova corrente demo-islâmica não está sozinha no terreno. O apoio do Qatar aos rebeldes na Líbia, depois na Síria e, agora, a espectacular transferência doa liderança do palestiniano Hamas de Damasco para o emirado sugere que no Golfo há quem tenha outra agenda.
O comportamento do eixo do Golfo desde a Primavera árabe apenas se compagina com a agenda Ocidental na tentativa de isolamento regional do Irão. Esse mesmo Irão que na última década armou e pagou o Hamas. Em tudo o resto diverge. O Golfo não se mexe por pulsões democráticas ou reformistas no islamismo. A repressão da insurreição no Bahrein - a que nunca fez grandes reportagens na AL Jazeera, nem se viu que extensão terá realmente tido - está aí para o recordar. Por outro lado tem ligações no mínimo polémicas com sectores que foram pelo menos próximos da Al-Qaeda e que integraram as milícias no Iémene, na Líbia e agora na Síria.
A transferência do Hamas para o Qatar seria impensável há uma década e teria provocado uma forte condenação americana que agora se não viu.
No novo xadrez regional, Israel não está melhor acompanhado do que antes. A parceria com o Egipto corre sérios riscos de ser desfeita como a boa relação com a Turquia está comprometida já desde os antecedentes do assalto à flotilha em Gaza. Israel vai ter que reconstruir a sua visão da região e fazer escolhas. Parece-me claro que a mais segura é a de uma relação discreta mas diplomaticamente sólida com as novas forças demo-islâmicas, ou seja com o eixo Turquia-Egipto. Mas para isso é necessário que o Egipto não fique desestabilizado e as potências do Golfo sejam neutralizadas. Tal implica, infelizmente, que não haja desfecho rápido na situação da Síria.
Neste quadro. o Irão acabará totalmente isolado externamente, depois de ver a legitimidade do regime enfraquecida internamente. Parece-me o mais perigoso dos cenários quanto à manutenção da paz. Em quadros destes, a tentação bélica é enorme. E para onde cairá o Hezbollah? Continuando fiel ao Irão, como se comportará dentro do Líbano e na guerra com Israel? Custa-me a ver essa frente manter-se calma por muito tempo.
E no dia em que o Ocidente afirmar/reconhecer que o Irão está na iminência do ponto de não retorno nuclear?
Terá Israel informações, força e interesse em substituir-se aos EUA num ataque cirúrgico ao Irão, apesar dos riscos de retaliação? Eu diria que sim, até porque a fractura entre a Turquia e o Golfo não deixará de ser paralizante de qualquer manifestação de força que vá além das palavras.
Mas pode também ser, oxalá seja, que o redesenho das tensões políticas no Médio Oriente ponha a regi~~ao numa dinâmica do tipo Guerra Fria. Talvez fosse o melhor, pensando em geopolítica. E ajudava a que nos sentíssemos reconfortados por saber que, no rescaldo da Primavera árabe, é verdade que há alguns povos que conquistaram a democracia .