20.9.14

Salário mínimo, hipocrisias máximas - editorial do Luís Costa


(Em memória do meu amigo António Dornelas, estudioso atento das retribuições mínimas)


O que se está a passar com o aumento do salário mínimo nacional é uma cena de fancaria indigna e imprópria, que merece denúncia e repúdio. Estão em causa os agora e depois parcos rendimentos de centenas de milhar de pessoas situadas no fim da escala do salariato, um escalão acima do trabalho negro e dos falsos recibos verdes.

Em primeira linha está em causa a superação da barreira mítica dos 500€/mês, prevista para 2011, nos termos do acordo alcançado na concertação social em 5 de Dezembro de 2006, mas que nunca viria a ser realmente assinado pelos representantes dos parceiros sociais, como se pode verificar na versão disponível na página do CES/CPCS, que não tem estampadas as assinaturas dos subscritores do ACORDO SOBRE A FIXAÇÃO E EVOLUÇÃO DA RMMG (Remuneração Mínima Mensal Garantida). Ao contrário de outros acordos não houve vinho do Porto, champanhe, nem sequer água das pedras para suavizar potenciais azias. 

Três números mágicos sustentavam este acordo: 1. A RMMG seria fixada em 403 euros em 2007; 2. Deverá atingir 450 euros em 2009 e 3. assumindo-se como objectivo de médio prazo o valor de 500 euros em 2011.

Acompanhei o processo por fora, mas conheço relativamente bem a história por dentro. Um belo dia, o meu camarada e amigo, Manuel Carvalho da Silva, entregou-me um papelinho, daqueles com que vai tomando notas para suportar posições públicas, com aqueles três números mágicos: transmite aos teus amigos socialistas que nós [CGTP] subscrevemos o Acordo sobre o salário mínimo se forem estes os valores, disse-me. Levei a carta a Garcia e eis que naquele dia 5 de Dezembro de 2006, estando presentes o Primeiro Ministro, José Sócrates, e os Presidentes ou Secretários Gerais das seis confederações patronais e sindicais, conforme reza a acta da referida reunião, todos "subscreveram" o referido Acordo.

Enquanto o PM, pré-versão animal feroz, considerava o Acordo histórico e inédito e o  SG da CGTP o definia como um indicador ao país, Francisco Lopes, então em fase ascendente e depois candidato do Partido nas últimas presidenciais, considerava que o valor para 2007 era insuficiente, mas, vá lá, um sinal muito forte do crescimento do SMN.

Os dois primeiros patamares foram atingidos em devido tempo, com maior ou menor grau de consenso, mas em 2010, na emergência dos quinhentos e com a crise a bater à porta, a situação complicou-se. O Decreto-lei nº 143/2010, publicado no último dia do ano, fixava a RMMG em 485 euros para 2011, mantendo acesa a chama de posteriormente, ao longo do ano, com duas fases de avaliação pelo meio, atingir a conta redonda. Até hoje!

Nos mais de nove meses já vencidos de 2014 o assunto é presença permanente, mas o parto revela-se difícil. Na maioria que assume a governação emergem os bonzinhos e os mauzões lavando as mãos à espera que os parceiros sociais se entendam e a coisa lá se vai arrastando. Quanto ao maior partido da oposição as posições, naturalmente, opõem-se. Seguro assobia para o lado ou, numa versão benévola, recupera a velha tradição trabalhista do partido correia de transmissão sindical, neste caso das posições da UGT. Mas, sobre o tema, não anda melhor, o candidato a candidato que espero seja capaz de fidelizar o meu voto nas próximas legislativas. Evasivo noutra temáticas relevantes, é, nesta matéria, muito preciso, em estilo quadratura do círculo: montante próximo da CGTP, produção de efeitos próximo da dominante patronal (Janeiro de 2015).

Lá fora, nas cidades e nos campos, 400 000 trabalhadores esperam um sinal de reforço do magro rendimento que continuará sempre a ser escasso seja qual for o valor a estabelecer. É preciso dinamitar a barreira dos 500, esse muro construído com cimentos provenientes de várias gentes e lugares, em nome de princípios maximalistas ou minimalistas convergentemente contribuintes para o arrastamento da situação.

O mais razoável bom senso recomenda que no próximo dia 1 de Outubro deveria haver um novo salário mínimo que traga um pouco mais de calor (sempre ténue) ao inverno do descontentamento dos homens e das mulheres que auferem a pomposamente designada remuneração mínima mensal garantida.

Recuperando uma expressão popularizada com a construção da barragem do Alqueva: Decidam-se, porra!

Continuar a encanar a perna à rã, apenas confirma a sina do (nosso) fado: tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado...

1 comentário:

Porfirio Silva disse...

Há qualquer coisa que me escapa.

A moção de António Costa, sobre salário mínimo, diz o seguinte:

«É urgente recuperar o tempo perdido e garantir aos trabalhadores uma valorização progressiva do seu trabalho, conciliando o objetivo de reforço da coesão social com o da sustentabilidade da política salarial. Se o salário mínimo nacional tivesse sido aumentado para 500 euros em 2011, e posteriormente ajustado a evolução da inflação desde então, seria de 522 euros em 2015. O Partido Socialista defende, por um lado, que 522 euros deve ser o valor de referencia para o aumento do salário mínimo no próximo ano e, por outro lado, que é fundamental construir com os parceiros sociais um novo acordo de médio prazo que defina os critérios e uma trajetória para o aumento do salário mínimo nos próximos anos.»

Não me parece, pois, que essa distribuição "salomónica" do "encanar a perna à rã" seja "fair"... Ou, então, escapa-me qualquer coisa.