Vai por aí uma polémica sobre a classe média portuguesa medida em ordenados de mulheres-a-dias. Fernanda Câncio acha que toda a classe média tem mulher-a-dias, Luis Aguiar Conraria, pelo contrário, que as mulheres-a-dias são no mínimo, elas próprias, alta classe média e Carlos Santos que mesmo que a mulher-a-dias teórica o fosse, a real não o seria.
A mim, a coisa parece-me mais simples. A Fernanda tem razão nos factos, a classe média tem uma horas de mulher-a-dias (e não teria dinheiro para pagar uma empregada a tempo inteiro, ou se preferirem chamar-lhe como antigamente, uma criada) e deve haver por aí umas dessas mulheres a dias teóricas do Luis Aguiar, mesmo que tenhamos em consideração que a comparação é muito forçada: ganham 11 e não 14 meses, descontam para a segurança social da remuneração bruta que ele calcula, etc. Embora, como diz o Carlos Santos, muitas não tenham esse padrão de rendimentos.
Mas, parece-me, quer o Luis quer o Carlos falham o alvo. A questão económica de fundo é a de que a nossa classe média, constituída por famílias com dois trabalhadores e dois salários, faz as contas a partir do "salário familiar", o que muda um pouco as coisas. E, como trabalham os dois fora a tempo inteiro, têm um ou dois filhos e por aí adiante, compram este serviço mal possam, mesmo que possam mal. Acresce a questão social de que "ter mulher-a-dias" faz parte de um impulso legítimo para a libertação parcial das mulheres trabalhadoras das tarefas domésticas num modelo de vida familiar em que os homens são reticentes a uma parte sensível dessas tarefas que inclui, geralmente, as que vão para a mulher-a-dias, como a limpeza da casa e o tratamento de roupa. Dir-me-ão que é a "libertação" de umas mulheres à custa de outras. Será, mas não deixa de ser verdade, por isso, que é uma estratégia frequente entre nós, pensemos o que pensarmos sobre o que a motiva.
É nas explicações e não nos factos que a Fernanda perde toda a razão, porque vê no movimento para a contratação de mulheres-a-dias uma saloice nacional, um sinal do atraso nacional, num estilo de "os portugueses são parolos" que não ajuda nada à percepção do fenómeno. Vai mal quem vê no hábito de tirar os sapatos à entrada de casa uma explicação para o fenómeno. Muitos muçulmanos também têm essa tradição e não parece que isso faça muito pela igualdade de género.
Os portugueses têm mulher-a-dias porque dividem pouco as tarefas domésticas, trabalham horas demais (cá não há trabalho atempo parcial, como tem a generalidade das mulheres e muitos homens dos países nórdicos) e há desigualdade salarial suficiente para permitir comprar esses serviços. Mas nem somos os únicos nem estamos acompanhados apenas por outros pindéricos mediterrânicos. Com variantes, fazemos o mesmo que os ingleses e os americanos: compramos muitos serviços domésticos, desta ou doutra forma. Ou seja, deixamos o mercado entrar em àreas de onde os escandinavos o expulsaram. É verdade, mas não só para os serviços domésticos (e eu prefiro o modelo escandinavo para o qual não caminhamos) e tem custos, por exemplo em impostos.
Assim, somos reconduzidos ao que me parece ser hoje o maior problema da classe média portuguesa. Por várias razões, vive esmagada pelas despesas: a prestação da casa, a mensalidade do carro, a mulher a dias. Se juntarmos as férias no Algarve, uma ida ao cinema de vez em quando e a escola dos filhos, lá se foram os dois ordenados muito antes do fim do mês e o paraíso transformou-se em inferno. As horas extraordinárias, os biscates, a segunda ocupação, ajudam a resolver o problema quando a economia está quente, mas quando arrefece, a classe média sofre fortemente. Tal como agora.
E fica ainda uma questão: porque não hão-de as mulheres-a-dias fazer parte da classe média, com as mesmas expectativas e o mesmo modo de vida dos seus patrões? Se eu compro um serviço que consigo pagar (as tais horas) em que é que o facto de quem mo presta fazer ao fim do mês um salário próximo do meu (que não sou eu que pago) me afecta?
Caro Luís, se quem pensa que a nossa classe média se define por ter umas horitas de mulher a dias não faz a mais pálida ideia do país em que vive, junte-me ao rol. Mas a seguir faça um inquérito às classes médias e veremos quem tem razão.
Adenda. A Fernanda respondeu-me. Obrigado, Fernanda. Deixou claro que não tinha a intenção que li no seu texto. Culpa minha, certamente. Ainda bem que assim é, porque, no mais, convergimos na análise. O Luís também voltou à carga na caixa de comentários e promete dar notícias sobre o conceito de classe média no fim-de-semana. Garanto que o debate sobre quem são, o que querem e que problemas têm as classes médias portuguesas me interessa e que, até no plano político, a sua incompreensão gera muitos equívocos. Venha o debate, pois.
7 comentários:
Caro Paulo, tentarei responder com brevidade, se possível ainda esta semana, mas não prometo.
De qualquer forma, temos um problema para aplicar o seu repto final:
"Caro Luís, se quem pensa que a nossa classe média se define por ter umas horitas de mulher a dias não faz a mais pálida ideia do país em que vive, junte-me ao rol. Mas a seguir faça um inquérito às classes médias e veremos quem tem razão."
O problema é que ainda não acertámos com a definição de classe média pelo que é díficil definir quem vão ser os inquiridos.
Digamos que se aplicarmos a sua definição de que classe média é que contrata por umas horitas uma mulher-a-dias, então, nesse inquérito à classe média apenas participarão pessoas que têm ao seu serviço uma mulher-a-dias, pelo que o seu inquérito dar-lhe-á toda a razão.
A questão principal, parece-me, é mesmo a definição de classe média. Tentarei sobre isso escrever, como prometido.
Caro Luís,
Concordo, como não podia deixar de ser, que a expressão "classe média" quer dizer muita coisa em bocas diferentes. Há uns anos uns colegas do ISCTE fizeram um estudo sobre as classes médias que podemos recuperar agora. Digo-o de boa fé, que não me lembro das conclusões.
Evidentemente que a definição não poderia conter o definido. Talvez valha a pena tentar perceber onde nos conduziriam os modos de vida de pessoas assalariadas dentro de certo intervalo de rendimentos. Aí se veria se os factos lhe dão razão. Eu estou mesmo convencido que as nossas classes médias estão esmagadas pela despesa inerente ao consumo e que os dados sobre os orçamentos familiares,digo-o de memória, também apontarão nesse sentido. Mas estou completamente disponível para ver se os factos me contradizem e interessado na análise séria que deles fará, como bem sei.
Já agora, só mais uma pergunta. E é de facto uma dúvida que o seu texto me despertou.
Diz que se deve multiplicar o ordenado da mulher-a-dias por 11, enquanto que para os restantes trabalhadores se deve multiplicar por 14.
Indo ao Portal do cidadão, eis o que eu encontro: http://www.portaldocidadao.pt/PORTAL/pt/Dossiers/DOS_precisa+de+uma+empregada+dom++233+stica.htm
Passo a citar
"À semelhança de outros trabalhadores, as empregadas domésticas estão protegidas por vários direitos. É dever da entidade empregadora assegurar que estes estão a ser cumpridos.
O subsídio de natal é um destes direitos, garantido pelo Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de Outubro. O empregador deve pagar este subsídio à trabalhadora até ao dia 22 de Dezembro de cada ano, sendo que o montante a liquidar nunca deve ser inferior a 50% da parcela pecuniária correspondente a um mês de serviço."
"O direito a férias está também previsto para quem se dedicada aos trabalhos caseiros, não podendo ser substituído por qualquer outro tipo de compensação." [22 dias úteis]
"A empregada doméstica tem também o direito a receber um subsídio de férias. O valor deste subsídio não pode ser inferior ao que a trabalhadora receberia se estivesse a trabalhar efectivamente e deve ser liquidado até ao início do período de férias."
Pelo que, parece-me se deve multiplicar o valor mensal por 13,5.
E aqui não me parece que o ser contratada à hora, ou ao dia, ou ser contratada a tempo inteiro, faça grande diferença. Neste mesmo site, apenas no que toca a pagamentos à SS se faz essa distinção. Estou errado?
Tem razão. No plano formal, qualquer empregada doméstica tem os direitos que refere e se quiser fazer o cálculo para um "equivalente tempo inteiro" terá que fazer assim. Coisa diferente é a de saber se as mulheres a dias que prestam horas a diferentes pessoas auferem, de facto, tais direitos. Não tenho dados fiáveis em que me basear para afirmar que não beneficiarão de mais que os 11 meses, mas estou convencido que a situação modal estará longe de passar dos 12 e seguramente não chegará aos 13,5. Contudo, esse não é o meu ponto fundamental. Mesmo que uma empregada doméstica consiga compôr esse ordenado, isso não a impede de ser empregada de quem apenas tenha poder de compra para algumas horas. Se não me engano, é por aqui que teremos que ver a relação entre as microclasses médias e as suas mulheres-a-dias, ou, com mais pçropriedade, as suas mulheres-a-horas, que para quem tem uma empregada a meio tempo ou mais, já a história será diferente.
Caro,
Acho que, para se poder abordar estas questões com algum rigor temos que "congelar" os conceitos.
Quando falamos de "classe" ou "classes" estamos a falar de quê?
Estamos a utilizar o conceito "marxiano", que define os seres em função da "propriedade" dos meios de produção (quaisquer que eles sejam) e da formação social em concreto, ou do "modo" de produção?
Ou estamos a utilizar o conceito de "estrutura" ao modo de Levy Strauss, falecido recentemente?
Não é dispiciendo "congelarmos" as definições, pois que, me parece a mim, nesta discussão se está a "congelar" é o nível de rendimentos de cada "representante" das classes médias...
Integrar nas classes médias as "mulheres a dias", portuguesas, brasileiras, ucranianas, bielorussas, romenas, caboverdianas, o que sejam, não me parece de bom agoiro para a discusão.
Não sendo um marxiano, considero, e comigo alguns sociólogos e historiadores, que a definição de Marx ainda tem algumas virtualidades: definir as pessoas perante os meios de produção e a sua propriedade.
Creio que um patrão, de uma qualquer mulher a dias, pode integrar essa definição: pois detem os meios para a actividade da dita. A máquina de lavar roupa e louça, o ferro de engomar, os detergentes, o aspirador e etc. A mulher a dias, não possui coisa alguma...Simplista?
Nem tanto.
É assim mesmo.
A questão das remunerações...tem a ver com o mercado.
Há insuficientes mulheres a dias e a demanda do lado da procura é excessiva (eu sei do que estou a falar).
Lenine, prócere de Marx, definia os "pequenos produtores", ou a "pequena propriedade", ou a "pequena produção" quer agricolas, quer industriais, como os reprodutores naturais da ordem capitalista.
Os que agora são pequenos, tendencialmente, ou desaparecem e juntam-se ao exécito dos operários e trabalhadores por conta de outrém, ou tonam-se grandes e reforçam a "burguesia".
Hoje, por impulsos classificatórios,estatísticos e até de eficiência comunicacional, de toda a espécie, define-se aquelas "classes" A, B, C e quejandos.
Aqui impera muito o estatuto social, os níveis e os hábitos culturais, o chamado patamar histórico de consumo,a quantiade de dinheiro que se aufere ou granjeia, as geografias de residência.
Com pouco rigor, em minha opinião, se define "classes médias" como aqueles e aquelas que estão entalados entre "os muito ricos" e "os muito pobres".
Para uma harmoniosa gestão da "res publica" é necessário que "as classes médias" cresçam, diminuindo os rácios entre os pobrese os ricos.
Mas, a esta realidade não se pode, sustento eu, denominar "classes". Deve-se optar por outra designação que não esta.
Do ponto de vista da sociologia e da hitoriografia e quiçá da economia "classe" não é isto que temos estado a utilizar com alguma ligeireza - de um ponto de vista científico.
este é apenas um modesto contributo par uma discussão que me parece interessante.
J.A.
PS- A questão dos 11 meses de "remuneração" das mulheres a dias: é assim mesmo como o Paulo sugere.
Há uma "Convenção Colectiva" aceite pelo Sindicato dos Empregados Doméstics, da Portaria e Vigilância (não sei se a designação é a correcta), mas que foi criada por via administrativa (Portaria, creio eu...) pois que não há Associação Patronal para os "domésticos". Portanto, na prática, a "mulher a dias" aceita as condições que o mercado lhe propõe: sem férias, sem subsidio de férias e sem subsidio de Natal e menos ainda segurança social ou seguro de acidentes de trabalho e/ou pessoais.
Se me dão licença, pouco importará saber onde, como e quando se define classe média, mas se fala de casa, carro e mulher-a-dias e lhe juntarmos dois filhos adultos (um em mestrado e uma licenciada a trabalhar por conta própria sem qualquer apoio do Estado, mesadas, alugueres de quarto não contabilizado para efeitos de IRS, empréstimo bancário para arranjar a casa com mais de 30 anos e umas justas férias de bicicleta por essa Europa fora, como tive o prazer de fazer este ano, com saldo zero no final de cada ano... aí tem a classe média.
Vícios, como tabaco, bebidas alcoólicas, jogo de casino (nunca entrei num), casas de diversão nocturna... zero!
E no fim de 38 anos como professor, se me viram de pernas para o ar não cai nada... chegará como definição de classe média? Agora é só fazer as contas, como diria alguém conhecido, mas o mais dramático é que mais de 90% dos trabalhadores portugueses ganha menos que eu...
Já agora pode espreitar:
http://intercambius.blogspot.com
Uma cunhada minha com uns 12 anos de professora do ensino secundário, quadro de zona, tem estado a ganhar 1300 euros por mês.
A FCT ainda há pouco tempo dava 750euros aos bolseiros licenciados com 5 anos de curso, enquanto faziam o mestrado.
Pois toda esta gente que opina nos blogues e nos jornais acha que quem ganha 1300 euros é de classe baixa, ou seja o Estado português mantém alguns dos cidadãos com mais habilitações do país ao nível do miserável.
Ou seja, ou os opinadores não sabem nada do mundo em que vivem ou o Estado tem uma noção muito estranho sobre premiar o mérito (e quem estava a tirar um mestrado pré-Bolonha tinha algum, mais do que a média que nos gere e governa).
Nuno Magalhães
Enviar um comentário