25.4.14

O mágico que escrevia ao som dos boleros do pequeno gigante

(Uma crónica do LMC)
La vida no es la que uno vivió,
sino la que uno recuerda y como la recuerda para contarla
Gabriel García Márquez, Vivir para contarla (2002)


Já quase tudo foi dito. Muitos rancores ficaram (temporariamente) congelados nas gavetas, ao longo destes dias. A quase unanimidade dói. Soa a falso.
Sou suspeito. Li quase tudo o que foi dado à estampa do jovem Gabito ao velhoGabo, de seu nome completo Gabriel José de la Concordia García Márquez, nascido na Colômbia, sabe-se lá se em 1927 ou 1928, sendo apenas um dos dezasseis filhos do telegrafista de Aracataca.

Na minha estante, tudo devidamente alinhado e sempre ao alcance da mão, corresponde a quase meio metro, só superado em extensão e quantidade, no panorama hispano/latino-americano, pelo Manuel Vásquez Montalbán. Encostados à direita do Gabo está uma boa dúzia de livros do Mario Vargas Llosa que me dá gozo ler, com muito orgulho, mas, como não sou hipócrita, com algum preconceito.

Tenho e li grande parte na edição castelhana. Prefiro. Sem desprimor, por exemplo, para a soberba tradução que o saudoso Fernando Assis Pacheco -  companheiro ocasional, com a Edite Esteves e o Afonso Praça, nos cafés da Rodrigues Sampaio onde todos faziamos pela vidinha no primeiro quartel da década de oitenta do século passado - fez para a primeira edição portuguesa daCrónica de uma Morte Anunciada,editada por O Jornal, em Julho de 1983 (o original é de 1981) e me custou a módica quantia de 340 escudos (lembram-se?).

Mas o que aqui me traz agora é algo que pensei partilhar no início deste ano da graça de 2014, mas que, vá lá saber-se porquê, acabei por deixar cair na voracidade dos tempos e, ora, em tempos de mortes confirmadas, recupero.

No dia 5 de Janeiro deste ano morreu no Brasil, vítima também de problemas respiratórios, o pequeno grande cantor e compositor de charme Nelson Ned. Sofrendo de nanismo atingiu na idade adulta apenas 1,12 metros, mas tinha um vozeirão daqueles. Nessa ocasião foi tornado público que o grande GGM escrevia ao som da voz do cantor romântico, depois brega e nos últimos anos de inspiração e feição evangélica de onde se destacam, entre outros êxitos, Se eu pudesse falar com Deus, Quando eu falo com Jesus Oração do Aflito. Em 45 anos de edições discográficas, Nelson Ned vendeu 45 milhões de cópias, o equivalente a um milhão por ano.

   
O bolero é a vida, Gabo disse um dia, confessando que escrevia muitas vezes ao som da música de Nelson Ned. Embora não me lembre de escrever ao som de Nelson Ned (tenho como banda sonora de fundo os discursos esta manhã na AR...), ele também faz parte da minha vida e do meu território afecto-auditivo. Eu tinha 16 ou 17 anos quando surgiram os primeiros êxitos, a começar pelo Tudo Passará (Mas tudo passa, tudo passará/E nada fica, nada ficará/Só se encontra a felicidade/Quando se entrega o coração), passando pelo Se as flores pudessem falar (Hoje eu lhe mando essas flores/Que eu colhi de um jardim/Na esperança de que você se lembre/Um pouquinho de mim), sem esquecer esse magistral bolero Domingo à tarde que saltava das cornetas das aparelhagens sonoras das festas e romarias das nossas aldeias beirãs. Quem seria capaz de resistir à voz arrebatadora do pequeno gigante da canção (título da sua biografia), sublinhando letra a letra verso a verso, de forma límpida e cristalina: O que é que você vai fazer domingo à tarde/Pois eu quero convidar você para sair comigo/Passear por aí numa rua qualquer da cidade/Vou dizer pra você tanta coisa que a ninguém digo....

Nós éramos jovens viçosos, borbulhantes, sinais exteriores de penugem, a dar os primeiros passos no faça você mesmo, ainda não conhecíamos o Gabo, mas conhecíamos de cor e salteado os trauteantes boleros que tanto o inspiraram. Não líamos Gabito, mas devorávamos toda a magia da velha colecção Emílio  Salgari e outras coisas mais arrojadas, sob a superior recomendação do José Ferreira Monte (poeta nobre da paixão e luta, autor da letra de duas das famosas canções heróicas do Coro do Lopes Graça) na sua tribuna da biblioteca itinerante da Gulbenkian que regularmente passava lá pela terra.

Da corneta sonora do aparato televisivo, Cavaco aconselha que é tempo de abandonar as políticas de vistas curtas...depois, toca o hino.

Volto a Gabo. Na imprensa deste fim de semana, os últimos textos, as última homenagens. Tal como Nelson Ned, Gabo começa agora a ficar em paz. Tudo passa, tudo passará, mas algo fica... ficará?


  O quarto ficou submerso numa atmosfera silenciosa, dentro da qual não se ouvia nada a não ser o lento e sereno esvoaçar da morte (...) 
(GGM, A Revoada).

Saravá, Nelson! Hasta siempre, Gabo!

LMC

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