Não crês no amor?
?
Não ouves?
?
Não crês no amor?
Cala-te estupor.
Passadas algumas décadas continuo a reter estes versos do POEMA DO AUTOCARRO (Um de quinze tostões. Campo de Ourique.) do António Gedeão por via da cantata em que o maestro César Batalha, com o Coro de Santo Amaro de Oeiras, reinterpretou soberbamente o tema. Julgo guardar algures ainda o respectivo vinil.
Amor é uma palavra pouco comum no meu vocabulário. As palavras gastas e usadas por tudo e por nada sofrem profunda erosão e tornam-se ásperas, amargas, frutos do acaso.
Sosseguem. Não vou teorizar (melhor: especular sobre o tema). Vem tudo isto a propósito de neste último dia de Junho, final do Semestre europeu, expressão a conquistar lugar no dicionário das (in)utilidades, realizaram-se dois casamentos, a larga distância um do outro, de pessoas do meu território afectivo que tiveram a particularidade de sair do quadro normal instituído.
Algures em Sintra, a Ana e o Nuno foram à igreja! Eu explico: já estão casados, têm uma filha a caminho de ir para a primária e a Ana entendeu que deveria ter um casamento católico. O Nuno aceitou na condição de só ela fazer os respectivos votos e, consequentemente, ficar desobrigado dos santos sacramentos da igreja. Não é fácil de explicar, mas de uma forma simples, a Ana casou sozinha pela igreja. Disseram-me que o padre tudo faria para que na cerimónia não fosse visível este desiderato. A esta hora não sei ainda como as coisas se passaram, mas desejo-lhes boa sorte. Eles merecem!
Aqui em Tirgu Mures, na Transilvânia romena, cidade onde a população é metade hungara e a outra metade romena, realizou-se o casamento da Lavinia com quem trabalho, no âmbito de um projecto de transição escola vida activa, há cerca de ano e meio.
Na última reunião de trabalho e de coordenação propôs que a próxima se realizasse a 2 de Julho, anunciando que se ia casar no sábado 30 de Junho e procedendo ao convite/exigência de marcarmos presença no acto. Mas não vais de lua de mel, retorquimos. Não, só vou depois, na segunda vamos trabalhar.
E assim foi!
O que tem de especial é o facto de a Lavinia casar pela igreja ortodoxa com um muçulmano da Jordânia e, tal como a Ana, na prática casar sozinha... com o Ahmed!
Ao fim de dez horas de maratona casamenteira, eis o balanço.
O casamento religioso realizou-se ao ar livre no jardim do hotel/restaurante Atlântico, tendo a mesa/altar sido instalada em cima da relva no meio das ameixoeiras, macieiras e cerejeiras. Só estas já não tinham fruto e as outras ainda estavam em processo de maturação. Belo local, excelente ambiente.
Coloquei-me numa posição estratégica - debaixo de uma cerejeira, àquela hora, meio dia aqui, dez horas em Lisboa, os termómetros nos 30 - de modo a poder observar todos os passos essenciais do acto. De onde estava via de frente todos os passos.
O padre, homem para 1, 90 metros e uma volumetria bastante para lá da centena de quilos, revelou-se patusco e bem disposto e respeitou todas as fases em que o Ahmed deveria ficar fora de cena: não jurou sobre a Bíblia, não foi confrontado com a necessidade de beijar os livros sagrados e o acto final envolvendo os padrinhos foi também ajustado à circunstância. Isso não impediu que na prédica final o padre não passasse algumas verdades, como o facto de o direito religioso como o direito civil romeno acautelar exclusivamente o casamento monogâmico. Depois produziu alguns ensinamentos sobre os deveres de obediência e de lealdade, os filhos...
Tudo isto foi claramente perceptível porque o padre falava em romeno muito pausado porque como o Ahmed não sabe (suficiente) romeno a Lavinia ia traduzindo em inglês para ele as palavras do padre. No final o padre deu um abraço efusivo e beijou o noivo e a noiva e quando me aproximei para os cumprimentos da praxe, o pregador fez questão de me dizer em surdina que era um rapaz especial.
O banquete marcado para as duas ainda continuava às dez da noite quando procedemos à retirada. Non stop. Comida, bebida, dança, música. Não muito diferente do que se passa nas nossas paragens.
Momento marcante: O marido da Lavinia tem feições próximas do Sidney Poitier daí do tempo das Sementes de Violência, quando, como o Ahmed hoje, tinha menos de 30 anos. Quando o DJ pôs a rodar o tema principal da telenovela brasileira O Clone, passada entre o Brasil e Marrocos e que eu via na televisão romena em 2007, quando cá vivi, a Lavínia e o Ahmed tomaram de assalto a parte central do espaço de dança. Naquela fracção de segundos pude ver o brilho dos olhos, os gestos cúmplices, o deslizar das mãos, o agitar dos corpos, os lábios que se tocam. Uma e outras vezes.
Ó música.
Em tuas profundezas
Depositamos nossos corações e almas.
Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos
E a ouvir com os corações.
(Gibran Kahlil Gibran)
LMC
( Das crónicas que envia aos amigos e eu respigo para o Banco)
1 comentário:
Bonito texto, de olhar atento!
(um lapso apenas no excerto poético - «Não ouves?», sem «h»)
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