17.1.13

Beleza, o PS e a ADSE ou porque é dificil reformar o Estado Social

A agitação que se gerou em torno da entrevista  em que Álvaro Beleza mencionou a ADSE é bem sintomática dos défices do debate político português.
O responsável no PS pela área da saúde sentiu-se inteiramente à vontade para antes de qualquer fundamentação técnica, discussão pública, debate com dirigentes, deputados ou militantes, anunciar uma novidade política que só podia antecipar que teria grande impacto.
O PS, através de múltiplos dirigentes, deixou o seu porta-voz  isolado e apressou-se a humilhá-lo, remetendo o que disse para uma "opinião pessoal" que não é a "posição do partido". Algo que como todos sabemos visa apenas dissociar a organização da pessoa e dissuadir os dirigentes de terem opiniões. Bem podia ter dito que é um assunto sobre o qual se está numa fase de debate e em que nenhuma opinião pode vincular o partido, em vez de anunciar qual a que o vincula, em ataque de pânico pré-eleitoral com a reacção dos funcionários públicos.
O PSD veio confundir um ideia lançada para discussão de dentro de um partido da oposição com o que resultaria de um diferendo no espaço da governação que tem a obrigação de decidir no curto prazo.
E, consequência, o debate na área do PS sobre a continuação, restruturação ou fim da ADSE fica encerrado no momento em que estava a ser aberto, ainda que de forma pouco hábil, pela entrevista de Beleza.
Convém não esquecer no debate que há-de haver que a ADSE é um enxerto herdado do salazarismo, que sobreviveu ao 25 de Abril - tal como a Caixa Geral de Aposentações - e que ambas as instituições enfermavam de um conceito de segmentação da população por grupos socio-profissionais em matéria de acesso a cuidados de saúde e prestações sociais que a Constituição de 1976 pretendeu - e há-de conseguir - substituir por um sistema de direitos e deveres universais.
A ADSE alimenta hoje prestadores privados de saúde com montantes muito significativos. Registe-se, por exemplo, que houve 5 prestadores que facturaram mais de 10 milhões de euros cada um à ADSE em  2011. (Vai também uma aposta sobre os nomes de família dos grupos que dominam esses prestadores?)
Se aplicassemos o mesmo raciocínio com que justificam a ADSE na saúde à educação, teríamos o Estado a pagar a escolas privadas o ensino dos filhos dos funcionários públicos. Vale a pena estudar que efeito canibal sobre a qualidade do Serviço Nacional de Saúde tem a transferência massiva de recursos públicos para prestadores de cuidados que são a muitos títulos concorrentes dos públicos e o são, desde logo, pelos profissionais da saúde.
Se olharmos para a ADSE como subsistema de saúde, ela gera uma fractura entre funcionários públicos e trabalhadores do sector privado que, em tempo de invocação sistemática do princípio da igualdade, deve fazer reflectir as almas de esquerda. O que faz de mim, funcionário público, detentor do direito de acesso a cuidados de saúde financiados pelo Estado em condições diferentes e mais vantajosas do que os outros cidadãos do país?
A forma mais inteligente de defender a ADSE é a que adopta o meu amigo Alexandre Rosa, distinguindo o Estado-patrão do Estado-prestador e dizendo que ela deve ser discutida no âmbito laboral porque se trata de um benefício negociado entre o patrão e os seus empregados. É um bom ponto. Afinal, os patrões do sector privado acordam na negociação colectiva benefícios da mesma natureza. Esta visão tem, contudo, uma limitação. A ADSE não é um sistema de livre adesão. Eu, funcionário público, não posso renunciar-lhe, mantendo na minha disponibilidade a parte do meu salário que me é retirada e contentando-me, como os outros cidadãos, com os cuidados de saúde que o Serviço Nacional de Saúde, que os meus impostos financiam, me proporciona. Eu, use ou não use, tenho que pagar a ADSE.
Acresce a tudo isto uma angústia existencial primordial em tempo de crise. Os 235 milhões de euros que o Estado gastou e os 220 milhões que obrigou os funcionários públicos a descontar para a ADSE em 2011 estão a ser gastos eficientemente ou a financiar um sector privado de saúde, talvez insustentável e com uma dimensão que eu não vejo necessidade de manter, alimentando um "mercado" que é, afinal, pelo menos nesta parcela, fictício?

Lamento que o PS já tenha "posição" sobre a ADSE. Eu gostava de continuar a ver os argumentos serem esgrimidos, com a sociedade civil a saber quem defende o quê, em debates sem "Chattam House rule" e levando a que a oposição não tivesse uma atitude de reflexo condicionado face a qualquer risco político.
No clima em que este debate (não) ocorreu não se fará nunca nenhuma reforma bem planeada, porque não há reforma sem dor e sem perdedor e o país continuará emparedado entre os que querem cegamente destruir o Estado Social e os que temem perder um voto ao reformá-lo. Oxalá o clima mude.

Adenda. Nos comentários a este texto (no blogue e no Facebook) surge a referência a que a inscrição na ADSE já não seria obrigatória. Mas é-o ainda para quem ingressou em funções públicas até ao fim do ano de 2005. A inscrição apenas é facultativa, nos termos do Decreto-Lei n.º 234/2005 de 30 de Dezembro, para quem tenha iniciado funções após 1 de Janeiro de 2006. Esta foi uma das reformas do Governo de José Sócrates que caminhou no sentido daquilo que o Alexandre Rosa propõe e que fará da ADSE daqui a umas décadas o regime do tipo convencional que hoje não é.

4 comentários:

Anónimo disse...

Julgo que neste momento o desconto de 1,5% para a ADSE já não é obrigatório para os FP e Aposentados da CGA.
M. Martins

Francisco Clamote disse...

Quem sabe, sabe. Parabéns, Paulo, por definir muito bem o quadro no âmbito do qual a questão deve ser posta e discutida.

Anónimo disse...

Eu quando pago a fatura da luz à EDP, da água aos respetivos serviços, dos CTT, etc...também pago assistência na saúde dos funcionários. O que é que fica mais barato, não ter um funcionário porque está na fila do hospital ou um funcionário com um programa de saúde preventiva?
Responda quem souber ou quiser....

Anónimo disse...

Francisco Nogueira
Não sei se Beleza foi habil ou não( o PS não disse que não á refundilhação)no entanto é reconhecido pelo PS como lider nesta Area,certo,como tal têm/deverá pronunciar-se,sendo sempre questionavel o "momento".No entanto não sendo eu contra os enxertos,digo que devem os mesmos sustentarem-se a si mesmo,descontam 1.5% certo e os outros!? dizem os papelinhos que tiveram 861MILHOES de DESPESA e de CONTRIBUIÇÕES 221MILHOÊS não queremos "todos" uma sociedade mais justa,solidaria,....enfim mais fraterna.Assim sou decididamente contra estes enxertos.