Alexandre Abreu volta ao tema da inovação social, para rebater uma crítica minha a um anterior texto dele. Acha ele que não rebati os seus dois argumentos principais: a ideia da progressiva transformação do debate em redor da ‘inclusão social’ numa problemática cada vez mais técnica e menos política; (...) a tese de que o elogio da descentralização da política social, que acompanha habitualmente o discurso acerca da inovação social, deslegitima a acção do Estado e legitima a sua reengenharia em moldes neoliberais.
Vamos a ver se os rebato agora de modo satisfatório para o crítico.
1. A "tecnicização" do debate da inclusão social
Discordo de que estejamos a assistir a uma "tecnicização" do debate da inclusão social. Em Portugal estamos é a assistir ao desaparecimento do tema. À escala mundial, estavamos a assistir até à grande crise e talvez ainda estejamos, goste-se ou não, à maior redução da intensidade da pobreza de que há memória, sobretudo por obra dos sucessos económicos da China e da Índia, independente do que pensemos sobre a natureza desses regimes.
A inclusão social é muito mais vasta que o combate à pobreza, mas é nesse âmbito qu Alexandre Abreu se coloca e por ele ficarei. Para mim, a questão não é a de saber se iniciativas filantrópicas (como a dos milionários do manifesto de Bill Gates e Warren Buffett) são ou não "funcionais" ao capitalismo, é a de saber se mudam alguma coisa e mudam, mesmo que não mudem o "modo de produção". Mas, de novo, é outra história que estará em causa: queremos discutir a possibilidade da revolução, a inclusão social ou a redução da pobreza? Para acabar este ponto, não vejo nenhuma tecnicização nova no debate da inclusão social e seguramente o microcrédito (aliás, alvo recente de violentas e aparentemente justas críticas) não faz parte de tal tecnicização.
As iniciativas cívicas de redução da pobreza - ditas da sociedade civil - têm séculos e o microcrédito é apenas uma versão recente desse movimento antigo. Só que como nunca esperei que o microcrédito salvasse os pobres do capitalismo também me não desiludo por não o fazer nem me abstenho de saudar os que salva da pobreza, mesmo sabendo todos os seus limites.
2. A descentralização "deslegitima" a acção do Estado
Aqui, Alexandre Abreu passa completamente ao lado do fulcro do problema. A descentralização não deslegitima coisa nenhuma. Grande parte da acção do welfare state mais desenvolvido é descentralizada, o problema está na privatização da política social, no recuo no reconhecimento de direitos que acompanha o que tenho chamado de neocaritativismo e não na descentralização. Por mim, defendo mais Estado local na acção a favor da inclusão social - claro que com mais recursos - e maior empenhamento, entre nós, das autarquias. Mas, devo dizer, o risco de clientelismo do Estado local é o maior problema, não é a funcionalidade neoliberal nem a deslegitimação. Aliás, pensanso no caso português, o que mais deslegitima o Estado é a delegação num sector integralmente sem fins lucrativos, dominado pela Igreja, cheio de boas intenções mas renitente a reconhecer direitos sociais. Para que se perceba do que falo, estou a falar das poderosas IPSS que transformam recursos públicos em aparentes iniciativas privadas. Mas, seguramente, não são neoliberais. Serão conservadoras? Concerteza, mas é outra coisa, têm tanto horror ao liberalismo quanto o Alexandre para não dizer que fogem dele como o diabo da cruz.
Pergunto-me muitas vezes porque o Estado local em Portugal se interessa tão pouco pela inclusão social e vou encontrando algumas respostas. Na minha limitada experiência de autarca já me apercebi que o apetite pela delegação das funções sociais por parte das autarquias nas IPSS é tão grande na Almada da CDU como nos municípios do PSD ou do PS. E não paro de me interrogar porque há tão pouca iniciativa autárquica na àrea social. Basta pensar em Espanha para ver como tudo pode ser diferente.
Para ser claro, o que é funcional ao neoliberalismo é a privatização das funções sociais e a sua entrega ao mercado. Mas não é isso que está na moda em Portugal (nem nunca esteve).
Tudo isto dito, mais conceito marxista menos conceito marxista, mais marxismo mecanicista menos marxismo mecanicista, Alexandre Abreu tem um ponto forte no seu argumento: com o microcrédito pode começar-se pobre e acabar-se falido. Mas isso também é verdade para o crédito dado pelo Estado. Enquanto governante perdi uma batalha (perdida até hoje) para que o IEFP não pratique usura e accione hipotecas sobre beneficiários das suas medidas cujos negócios falham (mas sempre o fez, ainda o faz e não é privado nem instrumento do neoliberalismo).
Tem um segundo ponto ainda mais forte: o microcrédito só tira da pobreza uma pequena fracção dos pobres. Mas aí reside uma forte contradição do argumento. Se tem utilidade limitada, não é inútil. E cada uma dessas pessoas que sai da pobreza, vale uma medida. Sem pieguices, quando conhecemos o rosto dos pobres e os casos individuais de sucesso, às vezes devalorizamos o estruturalismo excessivo e o fatalismo dos que acham que só o que muda quase tudo vale a pena. Talvez seja essa a minha maior divergência com Alexandre Abreu. Porque no resto - e é muito - estamos mais próximos do que ele avalia e talvez os meus textos reflictam.
Acho, contudo, que em matéria de heresias sobre este tópico, há outras mais flagrantes para desenvolver. Por exemplo, a moda portuguesa recorrente de confundir luta contra a pobreza com ajuda alimentar, que vai da Conferência de São Vicente de Paula à associação patronal da restauração, passando pelos muitos bancos alimentares. Com o Natal à porta, Alexandre, vai ver a força que essa assimilação simbólica tem. E se há medida supostamente contra a pobreza que seja "funcional" ao neo (e ao paleo) liberalismo, é essa.
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