9.6.11

"Semprumar": homenagem a Semprun por um (ex-)comunista amigo meu

Confesso o meu fascínio pela escrita do Semprum, de quem li boa parte dos livros e as crónicas das últimas décadas, de reflexão sobre a Europa, depois reunidas em livros que andarão cá por casa. Gosto do estilo, da construção narrativa, do humor e do cinismo sempre presente.
Julgo que cheguei a ele através da Segunda morte de Ramón Mercader, mas a minha fidelização e fascínio têm um marco objectivo: Autobiografia de Federico Sánchez. É um livro que me enche as medidas e que leio com superior gozo. Assim aconteceu a noite passada. Noticiada a sua morte, no meio de uma insónia, eram para aí 3 da manhã, tirei-o da estante e foi até de manhã a saborear aquelas 300 páginas. A espaços é certo, os momentos mais "despertadores".
Trata-se de um livro em torno da sua expulsão do Partido Comunista Espanhol em 1964, juntamente com Fernando Claudin, numa reunião do Partido num castelo na então Checoslovaquia, por, entre outras razões que (porra, leiam o livro!) se prendem com as posições do PCE, em que imperavam o Santiago Carrillo e a Passionaria Dolores Ibarrubi, em relação ao estalinismo e à dependência do PCUS (aqui chegado, espero que o meu potencial leitor já saiba ou ainda não tenha apagado o significado destas siglas). A esta distância de quase 60 anos, é uma pancada forte vermos um dos paladinos do eurocomunismo ser acusado por um dos seus de subserviência em relação à URSS.
Coube à Passionaria comunicar a decisão dos orgãos do Partido. Por isso o primeiro e o último capítulo têm o mesmo título: A Passionaria pediu a palavra. Pelo meio toda uma história da vida no e com o Partido, das suas contradições que assume como o poema com assinatura "anónimo" que o Partido distribuíu e Semprum tinha escrito 10 anos antes, em Março de 1953, horas depois do anúnci oficial da morte de Estaline:
Morreu o nosso pai, o camarada,
morreu-nos o Chefe e o Mestre,
Capitão dos Povos, Arquitecto
do Comunismo em obras gigantescas.
Morreu. Morreu. Não há palavras.
Ressoam os tambores do silêncio.
Morreu-nos Estaline, camaradas.
Cerremos fileiras em silêncio.
Com profunda ironia recupera versos do seu extenso Cântico a Dolores Ibarruri, a camarada  ali à sua frente que entretanto pediu a palavra:
A ti Dolores, agora, quero falar-te,
com a minha voz profunda e entranhada.
Modesto é o lugar de militante
que ocupo nas fileiras do teu partido;
nem tão-pouco é exemplar o meu trabalho.
Digo-te sincera e simplesmente:
não sou um bolchevique, apenas tento sê-lo.
Eu não sou Dolores, de raiz
operária. Em mim não é a consciência de classe
que me norteia palavras e acções.
Bem o entendes. O meu coração é vosso,
bate ao ritmo glorioso deste tempo....
E por aqui me fico. A Autobiografia de Federico Sanchez foi o vencedor do Prémio Planeta, um dos mais prestigiados de Espanha, em 1977. A edição portuguesa surgiu em 1982 através da saudosa Moraes Editores. Não sei se voltou a ser reeditado ou se existe no mercado mas a minha biblioteca privativa está sempre pronta a emprestar.
Muito mais havia para semprumar, mas deixo à vossa curiosidade: a mal gerida relação com Espanha e o espanhol (escrevia sempre em francês), a sua faceta cinematográfica (colaboração entre outros no argumento do Z do Costas Gravas), a sua passagem pelo governo de Filipe González (de que resultou o livro Federico Sanchez se despide de ustede).
(texto recebido por mail)
PS. Eu cheguei a Semprun pela despedida de Frederico Sanchez e juntaria à galeria dos imperdíveis. entre os textos que mais conseguem construir uma ficção notável sobre um caso real numa situação extrema, que li eu próprio num contexto bem especial, o espectacular  "Le mort qu'il faut", que julgo que não tem tradução portuguesa.

PS2. Outro amigo, de outra geração, recorda a importância de "A longa viagem" na obra de Semprun. Definitivamente, há um ângulo diferente para cada um de nós, como se espera do respeito por um criador. Recorda esse amigo o receio fulcral dos resistentes perante a opressão brutal de ditaduras e totalitarismos:

Sendo as coisas o que são, a possibilidade de se ser humano está ligada à possibilidade da tortura, à  possibilidade de vacilar sob a tortura”(...) “Um homem devia poder ser homem mesmo que não fosse capaz de resistir à tortura, mas a verdade é esta, sendo as coisas o que são, um homem deixa de ser o homem que era, que poderia vir a ser, caso vergue diante da tortura...”.

Como todos sabemos ninguém regressa o mesmo da vida que Semprun conheceu.

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