5.5.08

Misturar alhos com bugalhos

Circula on-line um "manifesto em defesa da língua portuguesa contra o acordo ortográfico". Começo por dizer que não tenho posições definitivas sobre este ou qualquer acordo ortográfico. A ortografia é uma convenção e, como todas as convenções, discutível, passível de aperfeiçoamentos, correcções e também sujeita a formulações deficientes ou erradas. Os promotores do manifesto consideram que o Acordo Ortográfico em cujo processo de ratificação estamos é "uma reforma da maneira de escrever mal concebida, desconchavada, sem critério de rigor, e nas suas prescrições atentatória da essência da língua e do nosso modelo de cultura". Concedo facilmente aos peritos que considerem esta reforma mal concebida ou desconchavada sem grandes fundamentações, mas de vultos tão importantes do nosso panorama cultural esperaria uma razoável demonstração de como será atentatória da essência da língua e, até, do modelo de cultura. Percorrendo o manifesto encontro três críticas concretas ao conteúdo do Acordo: a) "É inaceitável a supressão da acentuação, bem como das impropriamente chamadas consoantes “mudas” – muitas das quais se lêem ou têm valor etimológico indispensável à boa compreensão das palavras." b) "Não faz sentido o carácter facultativo que no texto do Acordo se prevê em numerosos casos, gerando-se a confusão." c) "Convém que se estudem regras claras para a integração das palavras de outras línguas dos PALOP, de Timor e de outras zonas do mundo onde se fala o Português, na grafia da língua portuguesa.// A transcrição de palavras de outras línguas e a sua eventual adaptação ao português devem fazer-se segundo as normas científicas internacionais (caso do árabe, por exemplo)." Todas estas críticas me parecem razoáveis, mas nenhuma delas fundamenta tão acesa retórica. A mim, pessoalmente, parecem-me ter imanente apenas a concepção de que a língua portuguesa é um património específico de Portugal e não o instrumento de um condomínio histórico gerido por um conjunto diverso de nações livres e soberanas. Aceito a ideia de que podemos ficar orgulhosamente sós, se quisermos prescindir da mais-valia cultural da unificação ortográfica dos que têm como pátria a língua portuguesa. No entanto, seguindo por esse caminho, não estaremos a ser muito universalistas. Não quero entrar demasiado na discussão das soluções concretas encontradas, que admito com facilidade que sejam deficitárias. Mas o que temem os peticionários? Querem controlar a grafia das palavras que entram no português a partir de línguas africanas? Ignoram que já hoje a ortografia portuguesa não segue a pronunciação? Se fosse por causa do Acordo Ortográfico, o manifesto não me entusiasmava nem me incomodava muito. Mas irritou-me a deliberada mistura de alhos com bugalhos que nele se faz, quando se chama à colacção o "sistema educacional", que deve ser o sistema educativo que saiu da Lei de Bases aprovada por unanimidade na Assembleia da República em 1986. Logo a abrir o manifesto diz-se que o Estado "desagregou o sistema educacional, hoje sem qualidade". Pergunto-me de que desagregação estarão os peticionários a falar e a que qualidade da educação do passado se reportarão. Será a do período do experimentalismo pedagógico sem enquadramento sistemático que durou de 1974 a 1986? Será a do tempo do ensino liceal só para escassas minorias dos tempos da ditadura? Quando se terá começado a desagregar o sistema educativo de qualidade que tivemos no passado? Com a substituição de Hermano Saraiva por Veiga Simão, ou ainda antes, com a chegada ao Ministério do pai das epxeriências pedagógicas, o Minsitro Galvão Teles? Ou terá sido só com o prolongamento da escolaridade obrigatória para nove anos no tempo da primeira maioria absoluta de Cavaco Silva? Admito que uma parte dos peticionários tenha um conhecimento muito distante do sistema educativo e da sua evolução e que se sintam tocados por um aspecto que destaquem do todo e se agigante aos seus olhos. Parece ser o que se passa com as discordâncias sobre o papel da literatura portuguesa no currículo. Recordaria que as reformas curriculares são precedidas de muito trabalho de peritos e controvérsias técnico-científicas, não são despóticos actos de vontade deste ou aquele ministro. Acrescento, por outro lado, que acredito que o Plano Nacional de Leitura é uma medida bem conseguida de aproximação dos jovens à literatura. Mas é natural que os que confundem currículo e escola possam, ao mesmo tempo estar, por exemplo, contra as aulas de substituição e a favor de que o que está fora do currículo está fora do sistema educativo. Francamente, acho que a qualidade do sistema educativo foi chamada ao manifesto a despropósito e apenas porque é um argumento ad-hoc que dá jeito para tentar cavalgar ondas de descontentamento. Ou seja, é uma proclamação retórica sem a seriedade que o tema do Acordo Ortográfico e as responsabilidades cívica dos signatários da petição exigiriam. Apetece pedir aos signatários que tirem a tirada demagógica sobre a educação da petição, que não misturem alhos com bugalhos, mas confesso que não acho a confusão involuntária nem ingénua, apenas infeliz. (escrito no Canhoto)

2 comentários:

Helena Araújo disse...

1. Concordo que este manifesto mistura tudo de uma maneira despropositada. Sobre o acordo ortográfico, e apenas ele, há uma crítica muito melhor aqui:
http://www.petitiononline.com/acor1990/petition.html

2. "Aceito a ideia de que podemos ficar orgulhosamente sós, se quisermos prescindir da mais-valia cultural da unificação ortográfica dos que têm como pátria a língua portuguesa. No entanto, seguindo por esse caminho, não estaremos a ser muito universalistas."

O universalismo ilude a realidade. A mais-valia cultural passa mais por estudar e reconhecer as diferenças que por unificar artificialmente a ortografia, criando nos países envolvidos uma escrita que se afasta da pronúncia (dois exemplos: receção/recepção; equidistante/eqüidistante).

Do que conheço do português de Portugal e do do Brasil, não é possível criar um "português universal". Mesmo ignorando as palavras que só são usadas no Brasil ou em Portugal, temos demasiadas palavras comuns mas com significados diferentes (heterossemânticos).
Adoptar uma ortografia comum complica e empobrece as duas variantes da língua, sem contribuir em nada para uma aproximação real. Os heterossemânticos permanecem, e só se reforça a ilusão de universalidade.

Isto é saber de experiência feito: passei oito anos a tentar criar uma versão "neutra" do português, para usar simultaneamente em Portugal e no Brasil. Adoptei as regras do acordo ortográfico de 1990, mas esse acordo revelou-se um detalhe sem importância. O "português neutro" não funcionou, devido às diferenças de significados. Dei alguns exemplos na primeira metade deste post:
http://conversa2.blogspot.com/2008/05/portugus-neutro.html

Em suma: um português universal por motivos economicistas (era o meu caso, a empresa não queria duas traduções para português) só provoca descontentamento dos dois lados do Atlântico.
Além de se perder de vista um princípio importante: o respeito pela diferenças linguísticas como uma riqueza cultural.

Anónimo disse...

Excelente artigo de crítica aos que se opõem "indignadamente" ao acordo ortográfico. A questão de fundo é mesmo só esta: queremos ou não que haja concertação entre os países "proprietários" da língua portuguesa, que são muitos, enão apenas Portugal, nem apenas o Brasil? Se quisermos, então temos de respeitar todos os nossos interlocutores, tenham o tamanho do Brasil ou o de S. Tomé e Príncipe. E respeitar significa honrar os textos assinados. Os "críticos" do acordo têm todo o direito à sua opinião, mas não podem deixar de estar conscientes de que, do alto do seu pretenso portuguesismo, estão a desprezar os nossos parceiros e aliados. Todos teriamos mais respeito pelos "críticos" se falassem em renegociação, e não em atitudes unilaterais de recusa.