O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida produziu um parecer politico-económico sobre um modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos, pelo que emitiu um parecer muito infeliz.
O Governo sabia bem o que procurava. Solicitou resposta para uma pergunta específica sobre três grupos de fármacos que são simultaneamente caros e usados para circunstâncias clínicas em que está em causa ou a relação vida/morte (como no medicamentos retrovirais e nos oncológicos) ou um nível razoável de qualidade de vida (como nos medicantos biológicos para doentes com artrite reumatoide). O Conselho refugiou-se numa resposta genérica sobre um modelo aplicável a todos os medicamentos, fugindo deliberadamente à questão central da pergunta, que não pode olvidar-se: em que circunstâncias é ética a omissão de tratamento em absoluto ou com um determinado fármaco ("o racionamento") a um doente que correrá por essa omissão risco de vida ou de perda permanente e grave de qualidade de vida? A resposa genérica devolve a decisão à política e não arrisca nenhum critério ético sobre como definir as linhas vermelhas em que a decisão económica viola o direito humano à saúde.
O percurso do Cnselho para chegar a este parecer não é alimentado numa reflexão ética sobre a vida e o dever do Estado na salvaguarda do direito à vida, mas numa reflexão política e económica sobre a imperfeição política e a desigualdade no capitalismo democrático.
Para lá chegar, o Conselho cuidou de afastar do seu parecer a definição de saúde da Organização Mundial de Saúde, que a define como bem-estar físico, mental e social, acusando-a liminarmente de "nivelar por cima" e de tentar "transformar todos aqueles que não são saudáveis em saudáveis". Ora, no contexto de uma reflexão sobre medicamentos contra o VIH+, o cancro e a artrite reumatóide, tal invocação não faz sentido, porque a dimensão tripla de bem-estar físico, mental e social só pode ser aplicada à defesa de padrões de qualidade de vida aceitáveis e não à não doença. Ponhamos nós, então, a questão que o conceito de saúde da OMS convocaria: em que circunstâncias pode omitir-se a distribuição de um fármaco que previna a produção ou impeça o agravamento de uma situação de deficiência ou incapacidade permanente? Esta é uma pergunta cuja resposta está no campo do bem-estar, requer a definição de saúde da OMS e implica critérios éticos.
O Conselho repudiou a pergunta e só se aproxima da resposta a ela pelo ângulo da justiça distributiva. E aqui, convocando a ideologia. Traz John Rawls a terreiro, en passant, para o rotular de utópico, ou melhor de ter uma formulação teórica que não se aplica porque (cito) foi "desenvolvida no contexto de uma sociedade quse utópica." E parte para a defesa de que se deve procurar o "maior bem" para o maior número, concluindo que "só se torna eticamente admissível melhorar a saúde da população desde que essa melhoria abarque a melhoria da saúde de todos os grupos populacionais".
Esta afirmação é eticamente absurda. Nomeadamente se pensarmos em pacientes de doenças genéticas, o conceito de "todos os grupos populacionais" não é aplicável. O grupo populacional específico afectado pela doença é um grupo fechado e é o grupo relevante em si mesmo. A pergunta ética pertinente parece-me ser a de apurar a extensão dos deveres da sociedade face a esse grupo discriminado pela lotaria biológica. Atendendo a que a pergunta feita pelo Ministro incluia o cancro e a artrite reumatoide, não é aceitável que o Conselho não particularize a sua reflexão.
O cerne do pedido de parecer, do ponto de vista ético, foi bem sintetizado pela Comissão: "Como devemos então equilibrar os melhores resultados em relação à justiça na distribuição de oportunidades? Como balancear de forma justa a questão dos “melhores resultados” com a equidade de oportunidades?" Mas a única resposta a que uma Comissão de Ética não podia furtar-se fica por dar. A Comissão responde assim às perguntas que formula: "Temos, sem dúvida, de assumir que não dispomos de uma forma apropriada de introduzir modelos que deem resposta a questões desta sensibilidade e que têm no seu cerne a dignidade de cada ser humano."
Na falta de uma resposta ética, a Comissão juntou a adesão à pressão económica de conjuntura à orientação política por um conceito de justiça distributiva vago e não operacionalizável em política de medicamento.
A Comissão decidiu incorporar na reflexão o objectivo de redução de despesa incluido no Memorando de Enendimento com a troika. Este não é de todo o seu terreno. Se por absurdo o Governo tivesse negociado a redução em 100% da factura dos medicamentos, essa decisão emanava da responsabilidade política e não da esfera de acção de uma Comissão de Ética. Esta decisão política conjuntural não é invocável e ao fazê-lo, a Comissão não honrou o seu mandato e desvirtuou uma reflexão necessária sobre como se deve relacionar a ética com a contenção de custos de saúde.
Atingimos um nível de desenvolvimento tecnológico em que é possível teoricamente melhorar muito a saúde de cada pessoa esecífica que sofre de certa uma doença se não atendermos à distribuição dos recursos. Mas vivemos num mundo em que a escassez de recursos se mede em capital e é impossível pagar toda a saúde tecnologicamente possível a toda a gente. Que quantidade de saúde se pode providenciar - se quiserem, embora fira os ouvidos - que racionamento da saúde se deve fazer?
Tal como nos outros direitos sociais fundamentais, a gestão da escassez obriga a reflectir em termos de conflito e hierarquização de direitos. Que outros direitos meus e que direitos dos outros podem conflituar com a realização absoluta do meu direito à saúde? Sem dúvida que tem que haver uma gestão equilibrada de recursos entre a saúde e outros campos da acção do Estado e que tem que haver uma gestão equilibrada de recursos dentro da saúde.
Parece-me evidente o limite ético absoluto para a definição do qual a reflexão da Comissão devia onduzir-nos: a salvaguarda da dignidade humana em todas as condições clínicas, incluindo as que motivaram o parecer. Mas disso, como vimos, a Comissão fugiu.
Em alternativa, transpôs para Portugal um modelo de decisão política de dispensa de medicamentos, que até me parece equilibrado: salvaguarda a decisão clínica, enquadra a decisão adminsitrativa e baliza a decisão política; exige informação, participação e transparência; salvaguarda os papeis de clínicos, representantes dos doentes, da adminsitração da saúde e da política. Mas nada diz sobre os limites éticos à decisão nas três fases que prevê (clínica, clínico-adminsitrativa e de decisão pública).
É um modelo farmaco-administrativo-político-económico sobre o processo de racionamento de medicamentos que podia ter sido sugerido por qualquer comissão de assessores do Governo e não acrescenta nada à discussão ética dos limites à margem de manobra desses decisores.
A Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida passou, assim, um cheque em branco ao Governo. Na posse deste parecer, este está tão livre para decidir o que julgar politicamente mais adequado como estava antes. Mas agora pode também invocar a legimitidade do silêncio ético do parecer da Comissão.
Se o Governo gerir de modo eticamente inaceitável o "racionamento" dos medicamentos resta aos cidadãos uma só instância. É o que o respeito pela dignidade humana, não se squeçam, está sob alçada constitucional.
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