Li e reli o discurso do Primeiro-Ministro para concluir que hoje ele atirou pela porta fora dois equilíbrios históricos da sociedade portuguesa. Desobrigou o PS do dever de convergência com o Programa de Assistência Económica e Financeira, lançando-se na aventura de gerir o maior ajustamento da história recente sem acautelar um apoio alargado, ainda que pela passividade e discrição, de todo o espectro do consenso europeu em Portugal. Rompeu o pacto social inerente ao nosso sistema de segurança social, desequilibrando o esforço contributivo entre patrões e empregados. O financiamento dois terços-um terço não é uma originalidade portuguesa, mas a característica predominante do modelo de segurança social a que pertencemos. Nos 45 países europeus cobertos pelo relatório sobre a segurança social na Europa, os trabalhadores portugueses passarão a ser os 5ºs com maior esforço contributivo (agora eram os 17ºs) e os empregadores o 25ºs (agora eram os 16ºs). Para quem invoca a distribuição equitativa de esforços não deixa de ser significativo.
Encontrei no texto oito razões para dizer a Passos Coelho que rompeu irreversivelmente com quaisquer convergências possíveis na gestão de uma crise que era ameaçadora e se torna, pela sua mão, avassaladora.
1. O que nos foi dito resulta de uma opção tomada pelo Governo na 5ª revisão do Memorando de Entendimento com a troika, desligada dos compromissos originais (e já longínquos) e, a fazer fé na declaração do PS, não tendo em conta a posição da maior força da oposição, ao contrário do que aconteceu com o Memorando original. Portanto, o Governo quebrou o elo umbilical que ligava o PS ao PSD e ao CDS em matéria de Programa de Assistência Económica e Financeira.
2. O Governo tem um erro de base no entendimento do que se está a passar na economia portuguesa. Regozija-se com a rapidez da redução do défice externo ignorando a fragilidade dessa redução baseada na contracção da procura interna, que desaparecerá logo que a procura interna se expanda de novo, a menos que o abaixamento do nível de vida dos portugueses se torne estrutural. Mais, menospreza e silencia o risco externo que representa a evolução previsivelmente engativa do nosso segundo maior parceiro comercial, a Espanha.
3. Passos Coelho reincide no erro de pensar que a nossa relação com os mercados financeiros é um problema de prestígio e honra. Pelo contrário, ela deriva de sermos um dos elos objectivamente mais fracos de uma arquitectura institucional errada do Euro. Esse elo será enfraquecido pelas medidas erradas europeias e reforçado pelas medidas correctas. O problema português, como o espanhol, não foi o de um "regabofe orçamental", mas o de absorção desequilibrada de uma liquidez excessiva gerada, entre outros, na Alemanha, que desencadeou uma bolha de crédito fácil, aliás mais privada que pública, que em Portugal se reflectiu num comportamento irresponsável da banca comercial, que é sistematicamente omitido na identificação das causas da crise portuguesa. Mas na componente subjectiva que a crise portuguesa tenha, Passos Coelho atirou no último ano pela borda fora um dos grandes factores que diferenciava Portugal de Espanha e da Grécia: a convergência entre Governo e oposição, que só pode ter acabado hoje. Depois do comunicado de hoje o PS só pode estar contra o Orçamento de Estado, sob pena de se tornar risível a dureza das palavras por si ditas.
4. A declaração pode ter sido precipitada para não dar espaço a que sejam digeridas todas as consequências da nova orientação do BCE. Passos Coelho reconhece que os desenvolvimentos "facilitam o nosso processo de ajustamento" e apressa-se a cortar cerce qualquer estratégia que os aproveite para mudar ou sequer flexibilizar o rumo que tem seguido. Pela primeira vez desde que é Primeiro-Ministro é confrontado com uma iniciativa europeia hostil à sua estratégia maximalista de austeridade sem compensações e o BCE pode bem ter-lhe introduzido o constrangimento inesperado de não poder mais invocar que tem consigo o pensamento comunitário hegemónico. Sem o PS a seu lado e em perda nas instituições europeias (até Durão Barroso já fala da defesa do Estado social dos "países resgatados"), o governo português iniciou, inesperadamente para si, o caminho para a solidão e intui que o ano pré-eleitoral alemão pode ter mais incertezas do que as que antecipavam os colóquios de Gaspar com Schauble.
5. O Tribunal Constitucional é invocado de uma forma perigosa e irresponsável. Por um lado é desafiado, ao manter-se parcialmente o corte de subsídios a pensionistas e funcionários públicos sem ser introduzido tal corte no sector privado. Argumentar-se-á que se produz efeito equivalente, mas a argumentação está longe de óbvia e fácil. Por outro lado, o Tribunal é apontado a dedo à sociedade como sendo o culpado pela redistribuição de sacrifícios entre trabalhadores por conta de outrém, numa retórica que o torna culpado pela perda de rendimento da generalidade das famílias e que é de uma lealdade institucional pelo menos questionável. Deverá haver cadeiras algo agitadas no Palácio Ratton.
6. A pretexto da redistribuição de sacrifícios, o governo aumenta a taxa social única, em esforço global (mais 1,25%) e em esforço para os trabalhadores (mais 7%), enquanto a diminui significativamente para os empregadores. Aos trabalhadores do sector privado reduz em 7% o salário. Aos do sector público tira com a mão da contribuição o que devolve parcialmente com a do salário. Ou seja, baixa efectivamente os salários no valor da inflação e ainda no que resultar do ajustamento dos escalões de IRS, não anunciado hoje. Aos patrões baixa os custos salariais. Mas esta redução tem implícita uma curiosa engenharia financeira para o Estado: aumenta as receitas públicas (aumenta a taxa social única) e diminui as despesas por diminuir as contribuições do grande patrão português que se chama Estado. Ou seja, há mais recursos dos trabalhadores, menos dos empresários e do Estado no financiamento da segurança social pública. Habilidosa, esta redução de despesa que dificilmente poderíamos fazer caber no conceito de "gordura" do Estado.
7. Em vez de seguir a via de garantir os níveis de rendimentos dos portugueses, impõe a ideia de que as famílias serão "aliviadas" pela redução de preços que derivará da redução de custos para as empresas. Pura ilusão, a menos que se acredite que Portugal vai entrar em deflação, o que agravaria ainda a espiral recessiva. Algo aqui faz lembrar as velhas estratégias de congelamento de preços e de preços tabelados tão iliberal e tão funesta para o desenvolvimento nos "bons velhos tempos" do proteccionismo português.
8. Tapando o sol com a peneira, o Governo apenas deixa por definir uma medida, que tem, em abstracto, potencial socialmente positivo. Anuncia algo que parece uma taxa negativa de imposto, mas deixa-o para a concertação social. Nas medidas hardcore de diálogo social em qualquer sítio do mundo, como o esforço contributivo, avança sem consulta nem diálogo, sózinho. Neste aspecto abre a porta a uma negociação em que não há grande coisa para os parceiros negociarem entre si, na medida em que deriva essencialmente da vontade do Estado em gastar mais ou menos. Veremos se e que parceiros sociais mordem o isco.
Em síntese, o Governo hoje rompeu dois pontos essenciais de equilíbrio político. Atirou fora a convergência sobre o ajustamento financeiro com o PS, desobrigando-o de qualquer dever de cooperação com quem não o tem em conta. Tão ou mais importante, rompeu um equilíbrio entre empregadores e trabalhadores no financiamento da segurança social que vem de muito longe. Em vez de menos de um terço do esforço contributivo para a segurança social, os trabalhadores passam a fazer metade. Que mais será preciso para dizer preto no branco que estas medidas não são tomadas em nosso nome?
1 comentário:
Não me lembro do tempo do Salazar, porque quando nasci ele já tinha partido para outro mundo... Mas perante isto e face ao que o povo dessa época sofreu, começo a achar que viver no salazarismo era melhor!
Não é, Dr. Paulo, que quisesse viver nesse tempo, longe de mim... Mas sinto-me tão revoltada com tudo isto que se está a passar, que me apetece berrar para o mundo "CAMBADA DE FASCISTAS!"...
Não me nego a contribuir para a saída da crise... mas recuso-me a continuar ser sempre eu!
Parece que o trabalhador, e especialmente o funcionario do estado, é um alvo a abater!
Estes senhores não estão lá com o meu voto... mas sou eu, e mais não sei quantos como eu e como o Sr. Paulo, que temos de "papar" com as asneiras que fazem...
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