10.12.12

Marx e Lenine não estão seguramente entre os problemas políticos da Turquia actual

Soube hoje, por esta notícia que me chegou, que o index turco proibia as obras de Marx e Lenine. Estou pronto a jurar que vi, pelo menos Marx, nas livrarias. Mas a notícia diz que é mesmo assim, não é alucinação. E na baixa de Ankara, em Kizilay, ao sábado e domingo à tarde, há sempre bancas de grupusculos marxistas-leninistas, distribuição de panfletos com as caras dos banidos e música revolucionária numas aparelhagens arcaicas. De vez em quando há também umas manifestações, embora se deva dizer que nelas normalmente o rácio manifestantes/polícias fardados a preceito, com todo o equipamento das brigadas de intervenção, é pelo menos de 1 para 5  (um manifestante para cinco polícias, entenda-se).
Nos dias de hoje não são seguramente Marx ou o marxismo que exaltam os ânimos neste país de tradição autoritária, onde as clivagens políticas seguem linhas próprias e os democratas mais fieis não são necessariamente os republicanos mais empedernidos. A maior dessas clivagens é entre a manutenção da rígida separação entre Estado e Igreja, com a segunda submetida ao primeiro e uma abertura liberal, que dê à segunda espaço próprio na via pública. A segunda, possivelmente, a da defesa radical da unidade cultural e linguística de um único povo turco versus o reconhecimento de estatutos específicos de minorias religiosas, culturais, étnicas ou regionais. A terceira, a que separa os que querem emular a próspera região Ocidental, dominada por uma burguesia cosmopolita, predominantemente de Istambul, capitalista à moda antiga e com interesses nos EUA e pela Europa fora e os que querem basear-se nos "tigres da Anatólia", uma rede de famílias que progrediu nos negócios com solidariedades comunitárias,  regras islâmicas e frequentemente virada para Oriente.
A conjugação das três dicotomias: rígido/flexível no laicismo; nacionalista fechado/aberto à diversidade cultural e aos regionalismos; defensor do capitalismo ocidental/defensor de aproximação às solidariedades informais islâmicas produz uma parte importante do espectro político relevante, com a identidade das principais forças políticas a não ser traduzível imediatamente para o padrão das famílias políticas europeias, por muito que elas "pesquem" partidos no país.
Bem vistas as coisas, se há algo que não se sente que tenha qualquer impacto na sociedade turca e nas suas clivagens é o apelo do internacionalismo proletário e Marx não é espectro que assole estas bandas actualmente, pelo que esta proibição até já devia estar esquecida.
Para tudo, por aqui, todos procuram uma via turca. Nesta fase, a interpretação politicamente predominante dessa via assenta na construção de uma excepção, que gostaria de tornar-se numa regra, a que alguns chamam neo-otomana e que seguramente pretende criar um sistema capitalista demo-islâmico. É possível? E se for, manterá a Turquia em rota paralela com a Europa ou mudá-la-à para uma rota convergente ou divergente? E se vingar na Turquia, é exportável à escala regional, como estão a tentar fazer acontecer no Egipto e pode vir a acontecer a médio prazo na Tunísia, na Líbia, na Síria, talvez em Marrocos?
Não sei que hipótese histórica terá o modelo de capitalismo demo-islâmico turco, mas podem ter a certeza que Marx e Lenine não se contam entre os seus problemas.  Daí, que permiti-los oficialmente valha essencialmente como registo da vontade de resolver incómodos com o direito internacional. O que, sendo lateral, não deixa de ser positivo, porque a liberdade de opinião é um bem em si mesma.