Li no Ilhas de Bruma o documento que se chamava Portugal Primeiro e fui ver em torno de que estamos juntos no próximo congresso.
É da mais elementar justiça começar por saudar a natureza do documento. É claro, não muito extenso, procura abranger as prioridades do partido e do país. Assim como se deve notar o caso - inédito no PS, julgo - de a estratégia que contém ter sido aprovada pela Comissão Nacional a que foi, julgo, o documento distribuído à entrada de uma reunião de curta duração, sem qualquer discussão prévia com os militantes, agora chamados a ratificar a decisão dos dirigentes. É um pormenor formal? Mas diz muito das concepções sobre o papel de militantes e dirigentes num partido socialista do século XXI.
A partir de hoje e até às próximas eleições legislativas se bem percebo este documento, no PS, só há para discutir cadeiras, fazer festa e "ajudar o partido" a menos que se queira enfrentar de uma penada o líder e o seu challenger. Confesso que não perco muito tempo com essa questão. Os papeis estão distribuídos, deixando-nos a liberdade para examinar as ideias em torno de que se celebrou a união dos socialistas, o que tentarei fazer de seguida.
No diagnóstico da origem da crise, o PS adere à (boa) narrativa do seu carácter sistémico e resultado da combinação da crise financeira internacional com as debilidades institucionais do Euro. Mas branqueia as responsabilidades de quem chumbou o PEC IV e omite os efeitos próprios da crise política no país que daí derivou naquilo por que estamos a passar.
Nos sucessos recentes do "regresso aos mercados", o PS atribui (bem) a responsabilidade a quem a tem, o novo protagonismo do Banco Central Europeu, embora omita o possível peso político específico da mudança do equilíbrio entre a Alemanha e a França com a eleição do socialista François Hollande.
A propósito das debilidades estruturais do país, o PS sacode (mal) a pressão da disputa interna sob a herança de Sócrates com a adopção de um vazio acto de contrição em nome de todos os governos, que resolve o problema de Seguro mas em nada ajuda a perceber em que se andou bem ou mal e o que se tem ou não que mudar para evitar a repetição de erros ou reforçar medidas correctas e adequadas.
A denúncia dos erros de caminho do PSD, da sua adesão ao austeritativismo feroz e insustentável à execução desequilibrada do programa de ajustamento, é feita de modo sistemático.
O principal objectivo definido para a política económica de reduzir a perda de valor da economia portuguesa, pareceria ultraprudente há alguns anos mas é realista no contexto actual.
O PS aponta também o caminho que parece adequado para a diminuição do garrote ao desenvolvimento do país que as actuais condições de ajustamento implicam. Aqui está talvez a mais importante demarcação do PSD que também demarca hoje os socialistas das das forças à sua esquerda: o memorando tem que ser revisto e não executado como o está a ser, mas também não pode ser unilateralmente denunciado. A energia posta nessa renegociação e o seu sucesso é uma das chaves para a viabilidade da alternativa do PS.
No plano europeu, o PS continua unido em torno de mais Europa, defendendo a mutualização da dívida, a união bancária e o aprofundamento da União Económica e Monetária. Mas não percebo porque não ataca alguns dos aspectos centrais do mau desenho institucional do Euro, tais como o alargamento do mandato do Banco Central Europeu ou o fim do escândalo de um sistema de financiamento das dívidas públicas que entre o mercado primário e secundário oferece fortunas ao sector financeiro que são subtraídas à riqueza das populações e ao investimento público.
Dir-me-ao que essa possibilidade é remetida para a proposta de um novo Tratado Europeu, ideia que tem ousadia, por muito obscura que seja ainda a noção de "Europa das Pessoas e dos Estados" de que parte e na qual posso ver o que o PS defende mas também exactamente o seu contrário. Contudo, é viável que a Europa aprove um novo tratado digamos na próxima década e que, se o fizer, siga o modelo federalista que o PS propõe? No momento em que se aprova o mais baixo orçamento da história da União, há algo de inconsequente em puxar a ideia de um novo tratado para o topo da agenda, sem esgotar os aperfeiçoamentos e correcções que se podem fazer no actual quadro.
Sobre a visão de futuro do país, há uma frase que me intriga e que quero acreditar que percebi mal. Diz-se que "as energias renováveis, o turismo, a exploração mineira e a agro-pecuária são a base dinamizadora". Não estão a imaginar que o futuro do país se faça de sol, turismo, minérios e vacas, pois não? Como destino, esta aposta seria a do empobrecimento que se recusa. Portugal não pode renunciar à indústria transformadora nem aos serviços modernos. Conhecemos as nossas fragilidades e vulnerabilidades competitivas, mas temos que desenhar um programa para as ultrapassar. Não podemos pensar que o nosso futuro é radiante se nos virmos apenas como um país limpo e campestre (um jardim...). É má-vontade minha e versões futuras do documento vão corrigir a mira. Contudo, a agenda para o crescimento e o emprego reforça a sensação de estranheza. Inclui tudo o que os socialistas andam a fazer há duas décadas, da retórica sobre a qualificação (sempre adiada) à promoção do empreendedorismo, passando pela simplificação administrativa. Desde o Contrato de Legislatura dos velhinhos Estados Gerais que esta é a agenda do PS, a mesmíssima que atravessou o "guterrismo" e o "socratismo", afinal aquela de que se fez acto de contrição a propósito da origem da crise. Novo, nessa agenda, apenas encontro o Banco de Fomento (porque não pode a CGD sê-lo, expliquem-me) e o programa integrado para aumento das exportações baseado na "inteligência económica" que espero não nos conduza ao erro de Sócrates e Passos Coelho de pensar que o nosso futuro são as economias de direcção estatal de semiditaduras ou ditaduras dependentes das suas riquezas naturais (como a Venezuela do "amigo Chavez").
No Estado social há um aggiornamento nórdico que se saúda, com a ligação à ideia de investimento social (a "predistribution" que Ed Miliband foi buscar aos EUA também pode ser inspiradora), mas nada de substantivo.
Na governação, o PS regressa à ideia de grande pacto social, ensaiada pela última vez em 1996 pelo governo de Guterres, repescando-lhe mesmo o nome de "Acordo de Concertação Estratégica". Concordo plenamente com a ideia de mais diálogo social, mas recomendaria um balanço da experiência que tivemos entre 1996 e 1999 antes de a ressuscitar, para que o pacto não morra tão ingloriamente como o seu antecessor.
Infelizmente, o PS não reflecte sobre o que pensa fazer enquanto partido para corrigir as doenças estruturais do nosso sistema de diálogo social, recusando-se a ver que este modelo está ultrapassado debilitado, porventura ferido de morte se não for rapidamente reformado e não forem redefinidas as suas regras, procedimentos e equilíbrios.
Embrulhado nessa concertação estratégica, e à falta de qualquer medida ambiciosa de redução das desigualdades, está um novo plano de combate à pobreza, que inclui o aumento do salário mínimo contra o qual o partido votou recentemente (quer assinar a petição que agora já está em linha com a posição do PS?), das pensões mais reduzidas e a reposição dos níveis de protecção social assegurados pelo complemento solidário para idosos e pelo Rendimento Social de Inserção.
Enfim, o texto que uniu os socialistas não se afasta das ideias que unem os socialistas pelo menos desde os Estados Gerais para uma Nova Maioria, em 1995. Essa é a sua grande virtude e o seu grande defeito porque Portugal enfrenta hoje desafios radicalmente diferentes num mundo que mudou mesmo desde 2008. A construção de um programa do PS para o século XXI segue dentro de momentos?
3 comentários:
Paulo. Normalmente discordamos sobre muitas coisas, mas ao ler o teu texto não posso deixar de sentir um repto à inteligência que infelizmente é cada vez mais raro. Pena que no país a discussão ande mesmo por cadeiras e festas. Parabéns. De leitura obrigatória...
Pois eu não diria melhor! O combate às desigualdades e a interrupçao do circulo vicioso da criação de pobres, combatendo o desemprego e os salários baixos deve estar inscrito na matriz do PS!
Isso, ou de como sobre este texto é possível elaborar um programa.
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