Em Portugal há um conjunto de garantias constitucionais que têm bloqueado em última instância intenções de liberalização absoluta das relações de trabalho. Há muita gente que gostaria de ver esse bloqueio constitucional removido mas se sabe impotente para tal enquanto não houver uma alteração substancial da relação de forças políticas, mudança de ideias maioritárias na sociedade ou capacidade para convencer o PS a abandonar o apoio a esses preceitos.
Os defensores da liberalização das relações de trabalho descobriram agora uma nova estratégia para atingir os seus propósitos, a qual consistiria num novo dualismo na sociedade portuguesa, entre os que beneficiam do sistema social que construímos e os que a partir de um momento determinado no futuro imediato ficariam fora dele.
Essa estratégia ecoa nas palavras do Governador do Banco de Portugal. Este escolheu muito apropriadamente uma iniciativa da Confederação da Indústria Portuguesa para pronunciar a seguinte frase:
«Sem correr o risco de cair no vício do contrato permanente, há que imaginar um novo contrato com muito mais flexibilidade e muito mais qualidade do que o contrato a prazo, que permita garantir uma relação estável, mas também não constitua um retorno ao passado»
Esta frase é um programa político inteiro que vale a pena analisar.
Repare-se que o senhor Governador trata o contrato sem termo como um inimigo, sem ambiguidades. Chama-lhe vício e considera a sua defesa um retorno ao passado. Ora, o contrato permanente foi, é e será a forma predominante do contrato de trabalho em todas as economias capitalistas. O que varia são as garantias que lhe estão associadas e a facilidade ou dificuldade de o modificar ou fazer cessar.
O senhor Governador não o ignora e ao associar os nossos contratos sem termo a um vício está apenas a criticar a sua regulação, isto é a Constituição e a legislação do trabalho e a apelar a que nos "libertemos" de uma e outra..
Como o Governador gostaria que o país tivesse um contrato permanente à americana que possa terminar a qualquer momento, com procedimentos simples e custos reduzidos ou nulos para o empregador, mas sabe que não tem força política para rever a Constituição, passo necessário para prosseguir o seu caminho, propõe o que seria uma originalidade portuguesa, a de ter no futuro os seus trabalhador concentrados numa forma periférica de trabalho, mantendo o contrato que hoje conhecemos para uma minoria, mais velha, que não tardaria muito a ser vista como um grupo de privilegiados e inadaptados aos novos tempos. É habilidoso e uma forma de esconder o essencial - a impotência para fazer o que pretende pelos meios de que gostaria.
O senhor governador revelou-se também um político com domínio da arte do "welfare retrenchment". Uma das técnicas usadas para este fim, identificada por Paul Pierson num estudo célebre sobre os governos de Reagan e Thatcher foi aquela que chamou de divisão dos atingidos. Ou seja, a fixação de novas regras, penalizadoras, mas que atingem apenas alguns, bem definidos, aliviando ou desmobilizando os que não atinge. Como a proposta se aplicaria apenas aos novos contratos, os trabalhadores do núcleo duro da força de trabalho actual, também os que constituem o que resta das forças sindicais no sector privado, não teriam por que se preocupar, dado que seria um problema dos outros.
Finalmente, o senhor Governador demonstrou ser um bom dissimulador. Querendo introduzir uma versão muito enfraquecida do contrato sem termo fez de conta que estava a propor uma versão enriquecida do contrato a termo. É uma estratégia inteligente de marketing político. Ou ele ou o seu spin doctor ou ambos são bons nisto.
As declarações do senhor Governador estão inseridas na catadupa de acções de terrorismo verbal em que, como bem identificou Estrela Serrano, estamos a receber todos os dias, como se fosse muito natural, bombas-relógio discursivas e dirigidas a adquiridos fundamentais do nosso pacto social.
Mas, neste contexto, o senhor Governador do banco de Portugal, inovou. O caminho que propõe é talvez o mais consequente de tudo o que se ouviu até hoje.
Não se pode rever a Constituição? Congela-se. Encontra-se formas de a contornar atingindo um número crescente de pessoas até que seja apenas um texto.Quando o senhor Governador diz que os contratos sem termo são um vício está a dizer que não concorda com uma das bases fundamentais do nosso edifício social. E quando diz que são um regresso ao passado, está a referir-se à constituição de 1976. Aliás, está mesmo a referir-se a um edifício que começou a ser construído já pela legislação laboral do marcelismo. Nessa recusa de regresso ao passado, o que o governador propõe é um salto em direcção ao futuro que nos deixe algures no séc. XIX.
A flexibilidade que o senhor Governador defende é a que foi há muito denunciada pela frase "entre o fraco e o forte é a lei que liberta e a liberdade que oprime". O seu autor? Muitos pensam que é Brecht e outros que é o próprio Marx, mas é Lacordaire, francês da primeira metade do séc. XIX, padre católico, dominicano e político liberal, dos antigos.
O vício que incomoda o Governador e o regresso ao passado que quer evitar tem um racional ideológico, o da assimilação do trabalho a uma mercadoria regulada tanto quanto se consiga exclusivamente pela lei da oferta e da procura. É uma perspectiva enviesada pelo lado do patrão nas relações de poder e pela utopia (que já se revelou negra) da utopia do mercado pleno. Karl Polanyi já explicou há muito como esta forma de entender a economia fez parte do movimento que levou a Europa ao desastre nos anos trinta. Foi contra tudo isso que por toda a Europa se construíram instituições de mercado de trabalho que garantissem a especificidade do trabalho como actividade humana. Instituições que terão que ser reformadas, mas que será terrível se forem arrasadas.
Admito que o Governador esteja apenas preocupado com a solução para controlar uma rigidez excessiva da nossa legislação em certos aspectos. Mas, então, sem subterfúgios e truques de político imediatista, discuta-se abertamente a questão de fundo, aponte-se o que se acha errado na Constituição e na lei e construam-se as convergências para o resolver, na concertação social e no Parlamento.
A técnica implícita na proposta do governador é democraticamente reprovável. Assenta na ideia de que podemos contornar a falta de consensos com uma habilidade institucional que crie factos consumados. Estou, aliás, convencido que o abuso dessa técnica ajudou a desresponsabilizar oposições por reformas necessárias e a aumentar a erosão dos governos que inventam medidas que escondem o que pretendem e criam factos consumados que as pessoas sentem depois de os viverem como enganos.
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