18.11.11

João Martins Pereira, o mais desconhecido dos mais influentes pensadores da esquerda portuguesa.

Esta semana fez três anos que faleceu João Martins Pereira, talvez o mais desconhecido dos mais influentes pensadores da esquerda portuguesa. Alguém que conseguiu ser realista quando todos queriam ser utópicos e utópico quando todos viraram ultrapragmáticos. Pedi a Acácio Lima, seu amigo pessoal e companheiro de lutas políticas, também amigo e passageiro frequente deste blogue que escrevesse um depoimento sobre ele. Ele, gentilmente, acedeu.



 1. Era um “colador de cacos”

João Martins Pereira, no seu dia a dia, era um observador muito atento do fluir das coisas, nos detalhes e vicissitudes, e tudo enquadrava na dinâmica dos processos, num novo patamar de crescente abstracção.
Tudo matrizava num pensamento integrador, onde sobressaia, a Teoria da política, a Teoria marxista da economia política e do materialismo histórico. Tudo surgia, não fragmentado, mas integrado num todo, havendo uma “continuidade”.
Era assim, se discernia sobre cinema, sobre teatro, sobre a teoria do romance, sobre a emancipação da mulher, sobre as teorias da pedagogia, sobre a banda desenhada, sobre os rumos e características da ciência e da tecnologia, nos seus imparáveis avanços, determinantes das mutações das relações sociais, nas suas vertentes do Modo de produção e da Divisão do trabalho.  E, claro, sobre as medidas de política económica e financeira.Qual o seu enquadramento ideológico e que interesses especificos servem.
Insisto na “integração”, na visão pluridisciplinar. Tudo na via da associação de ideias, inovadora e criativa, na rejeição da fragmentação, e sempre na atenção do histórico, do histórico da mutação, da mudança.
João Martins Pereira era um “colador de cacos”, paciente, refazendo “jarras”, retocando-as, escamoteando as rachadelas, mas sem perder o Norte, sabendo sempre onde estavam as “fissuras”. 


2. Sabia que tínhamos que “apanhar um comboio em movimento”

João Martins Pereira, não tinha o frenesim dos activistas políticos, mas conhecia muito bem a agit-prop. Preferia tudo decantar, detectar tendências, hierarquizar acontecimentos  e anotações.
Para João Martins Pereira esta questão de Transformar o Mundo, passava por esse organizar, hierarquizar e integrar, no histórico,  mantendo à distância todo e qualquer voluntarismo.
Daí o hierarquizar prioridades na condução da Política Económica, enquanto Secretário de Estado da Indústria, sendo Ministro João Cravinho, nos Governos Provisórios de Vasco Gonçalves. E, foi assim, que diagnosticou, que as mudanças estruturantes da máquina de produção e na máquina da distribuição, se teriam de centrar nas já significativas infra-estruturas existentes da Indústria Metalomecânica Pesada e Semi-pesada, bem como na Indústria Química, dita Pesada.  
Atento ao detalhe mas sempre na perspectiva do global, considerava essencial programar os ingentes investimentos de modernização e de satisfação de necessidades de um país out do desenvolvimento, por forma a regular as cargas oficinais nesse sector Metalomecânico Pesado e Semi-Pesado. Regular a atividade das diversas empresas-chave: Mague, Sorefame, Construtora Moderna, Cometna, Sepsa, Efacec, ... .
Para garantir emprego estável, e uma gestão consequente essa regulação de cargas passava por um Planeamento -Programação dos grandes investimentos.
João Martins Pereira articula assim a gestão empresarial, que ele bem conhecia, com uma Estratégia Política de Desenvolvimento. Articula dois níveis de programação.  Queira-se ou não, a ideia base de Planeamento existente em João Martins Pereira estava na mesma onda da do Plano de Melo Antunes – Rui Vilar.
João Martins Pereira, discretamente, criou esse Departamento “regulador” para a Indústria Metalomecânica Pesada e Semi Pesada. A preocupação de João martins Pereira com as cargas oficinais das empresas metalomecânicas pesadas e semipesadas deve ser lida como uma articulação do curto prazo com o médio e o longo prazo e terá de ser lida como uma preocupação em manter um emprego estável, no mínimo. Mas era sobretudo um apontar para a regulação, agindo, redireccionando, constrangendo e corrigindo o mercado.
Vem a talho de foice referir que a questão da planificação-programação, calendarização dos grandes investimentos que iriam surgir se tornou imperiosa e o Patronato acabou por criar anos depois o CIEP – Centro dos Industriais do Equipamento Pesado. O CIEP do Patronato, no seu jeito e à sua maneira, não era mais do que um “organismo de pressão” sobre os Governos. Mas, curiosamente, optou por uma partilha monopolista do mercado, ferindo todas as regras da concorrência.
Fica a nota da divergência-diferenciação entre as concepções-visão de João martins Pereira e as concepções-visão do Patronato.
No pensamento de João Martins Pereira encontrava-se a virtualidade de “apanhar o comboio em movimento” e de o “carrilar”, coisa que não parece ser desejada pelos maximalistas, que optam pelo voluntarismo e pelo virar costas à História. Ou, se quiserem, João Martins Pereira sabia muito bem medir a correlação de forças.  Ou ainda, se quiserem, João Martins Pereira jamais abandonava o radicalismo de pensamento, do seu pensamento nas suas abordagens, mas sempre firmava os pés na análise factual das situações.
Entretanto, João Martins Pereira “corta” com os Governos Vasco Gonçalves, e a ideia da Regulação, ficou na “gaveta”. Mas entende-se bem a saída de João Martins Pereira dos Governos de Vasco Gonçalves. É que também ele aderia a “ O Socialismo exige Democracia” e a Democracia, para se aprofundar de pleno, exige o Socialismo”.

3. A alegria de viver

 Concluo na heterodoxia.  A última carta que recebi de João Martins Pereira, dista de cerca de dois meses do seu falecimento.
A nossa correspondência era manuscrita  pois as emoções e afectividades não casam bem com o bater de teclas numa caixa de plástico.
Num parágrafo dessa carta João Martins Pereira, referia-se ao apport reequilibrador e de alegria no viver  que lhe vinha da sua relação afectiva com a Manuela.  Ela, entenderá bem esta minha heterodoxia de quase invasão do “privado”.  
Mas, também insistindo no “privado”, deixo uma palavra para a sua filha Marta que sempre valorizou bem as capacidades didácticas-pedagógicas de seu pai.

Acácio Barata Lima
Porto, Ramada Alta, 14 de Novembro de 2011

3 comentários:

joshua disse...

Não há dúvida. Belo testemunho.

Anónimo disse...

Obrigado, Paulo, pela recordação.
Em 1975 coleccionei leituras de JMP na Gazeta da Semana, mais tarde, Gazeta do Mês (as colecções estão no ICS, entregues ao João Serra, quando vim para Lisboa). A partir de 1976, em Económicas, usei extensivamente A Crítica a alguns aspectos do Plano de Fomento (pseudónimo Álvaro Neto); Indústria, Ideologia e Quotidiano; Sistemas Económicos e Consciência Social. Em ambas as frentes, do combate cívico pelas utopias e das abordagens inovadoras do economês, encontrei rigor nos caminhos da diferença e uma mensagem de entusiasmo para percorrer os caminhos desafiantes.
Não me surpreende que tenhas escrito esta nota que não só revela que o pensamento do João Martins Pereira não está esquecido, como inspira outros que, no seu caminho próprio, prolongam o legado das utopias fundadas num chão antigo.
AONeves

FNV disse...

Em semi-garoto, li e reli o Complexo da Avestruz ( acho que er assim, já lá vão muitos anos) e muitas vezes quis saber mais sobre ele.
Bom texto.