22.9.11

O secularismo islâmico é possível, agora? Resposta a Filipe Nunes Vicente.

Filipe Nunes Vicente (FNV) deu-me o privilégio de comentar o post anterior sobre a Turquia e a Primavera árabe. Respondi-lhe também na caixa de comentários. Mas, num segundo pnsamento, achei que o debate devia vir para a página da frente.
A minha hipótese é a de que, como escrevi, "a Turquia parece estar a fazer tudo para passar de uma excepção secular nos países de cultura islâmica, para uma força agregadora de um pólo de regimes pluralistas em que as forças islamistas são sufragadas pelo voto popular em eleições livres. Ou, se quisermos antecipar uma tendência provável, para a potência hegemónica de um novo modelo de regime político, o secularismo islâmico, que tem paralelos significativos com o domínio da democracia-cristã em certos períodos da história da Europa Ocidental."
O FNV traz à discussão dois teólogos liberais shiitas e iranianos, Abdolkarim Soroush e Mohammad Mojtahed Shabestari. Diz o FNV no seu comentário: "Secularismo islâmico? O Sourosh ( o Lutero do Islão...), e o Shabestari asseguram ser impossível.
É claro que pode a vir ser possível , mas se for só daqui a 300 ou 400 anos, como aconteceu na Europa com o cristianismo,temos problemas."

Deixemos, neste texto, de lado a questão de saber se os dois teólogos iranianos efectivamente asseguram que é impossível. Estou convencido, aliás, que lutam com as armas do seu pensamento em sentido inverso e o fazem no Irão, o que só por si demontra que há mais contradições em regimes que imaginamos versões religiosas do totalitarismo do que se vê à primeira vista.
Desenvolvo, pois, o comentário que fiz ao comentário de FNV, partindo do princípio de que há quem sustente essa impossibilidade (poderiamos dizer que é o que Bento XVI mostrou no polémico passo das suas primeiras intervenções pensar do islamismo em geral e isso chegaria para abrir a discussão).
Para haver um secularismo islâmico não é fundamental que haja uma teologia que o sustente. É fundamental que haja um quadro institucional que o sustente e protagonistas políticos que consistementemente o adoptem.
A Turquia moderna forjou esse quadro institucional sob inspiração do laicismo republicano do início do século XX, "à francesa". E, apesar da laicização da educação e do importante aparelho de Estado, teve que recorrer a mecanismos autoritários e a golpes militares para o afirmar. Mas, ao contrário dos regimes àrabes, esses golpes militares reevoluiram no sentido do pluralismo político e de instituições de natureza demo-liberal, por imperfeitas que sejam.
O laicismo, baseado na constituição, levou várias vezes os actuais protagonistas do país à prisão e à iolegalização das suas forças políticas islâmicas. Mas, sobre esse quadro, emergiu um novo equilíbrio institucional, que deu duas maiorias absolutas consecutivas ao partido pós-islamista, chamemos-lhe assim.
Aquilo a que assistimos na Turquia tem alguns aspectos paradoxais para o quadro predominante do pensamento ocidental sobre o islamismo. Frequentemente, os argumentos "demo-islâmicos" são os do pensamento liberal contra o jacobinismo.
Não creio que haja sinais de nenhum tipo de que o predomínio político do partido AKP esteja a construir uma situação de semidemocracia, como a que está em apuros no Irão e atrevo-me a dizer que a Turquia está a fazer a transição de um laicismo republicano para um regime democrático, islâmico e secular, com um partido "demo-islâmico" ou "pós-islamista" dominante, o que torna o conceito possível até prova em contrário.
Como pode, então, compatibilizar-se esta análise e a "impossibilidade" teológica do secularismo islâmico? Creio que pode haver uma "armadilha filosófica" nessa impossibilidade. Onde o poder depende do sufrágio, o político sabe que a sua força e a sua fraqueza têm autonomia - ainda que não independência - do teólogo. O que os políticos islâmicos ouvem na mesquita e lêem no Corão não tem que ser igual ao que fazem no quotidiano da gestão política, se estes instrumentos não forem a fonte do seu poder.
Sabemos que Obama frequentava uma igreja com um pastor radical, mas não é o Presidente desse pastor, não transportou as ideias desse pastor para a sua acção política e também não as deve ter esquecido nem as abominava (senão não frequentava a sua igreja).
Nada nos diz que a relação de Obama com o seu pastor é irreplicável no Médio Oriente das revoluções espalhadas por redes sociais. Também não podemos afirmar que vai acontecer. Mas a diferença entre a revolução iraniana de 1979 e as actuais revoltas passa por aqui. Em 1979 as massas insurgiram-se e entregaram o poder ao clero. Por muitas razões, não se vê nenhum sinal que vá nesse sentido em nenhum dos países da Primavera árabe. Pelo contrário, vêmo-los a escolher poderes de transição, a escrever constituições, a prometer eleições livres. Se forem por aí, insisto, o modelo turco é um dos poucos, senão o único que pode inspirá-los. Penso que os turcos o sabem e querem jogar essa cartada para recriar uma àrea influência no pátio das traseiras do ex-império otomano.
Em minha opinião, esses novos regimes constitucionais "demo-islâmicos" podem surgir não daqui a trezentos mas daqui a três anos. Mais, penso que são a melhor esperança de que possam afirmar-se regimes democráticos seculares e nãosemidemcoracias pluralistas sectárias (como no Iraque e no Líbano) ou teocráticas (como no Irão e na Arábia Saudita).
Assim haja políticos islâmicos que saibam encontrar para o seu pastor o lugar que Obama deu ao seu e cidadãos, crentes e não crentes, que os façam pensar que esse é o melhor caminho para se manterem no poder.

1 comentário:

FNV disse...

Caro Paulo Pedroso,


O privilégio de uma boa discussão é meu.
No Lathe Biosas estão dois links que explicam melhor a minha posição inicial. Depois rematarei.